Doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e outras doenças cardiovasculares, são as principais causas de morte no mundo. Embora tenham múltiplas origens, uma parte do risco está associada a comportamentos modificáveis, como alimentação inadequada, sedentarismo e sono irregular. A Medicina do Estilo de Vida propõe a prevenção e até a reversão dessas condições por meio de mudanças sustentáveis no dia a dia, com base em práticas cientificamente comprovadas. [1-2]
O termo foi consolidado pelo médico James Rippe em 1999 com a publicação do livro Lifestyle Medicine [3]. Desde então, a abordagem tem sido amplamente estudada e adotada em diversas áreas da saúde. A ideia central é que hábitos cotidianos são fundamentais na manutenção da saúde e que o profissional de saúde deve atuar como facilitador na construção dessas mudanças [2].
Seus seis pilares fundamentais são interdependentes e impactam diretamente a qualidade de vida:
Sono reparador: Dormir bem é essencial para a recuperação física e mental. A privação de sono está associada ao aumento do risco de doenças metabólicas, baixa imunidade e prejuízo cognitivo. [4]
Atividade física regular: Movimentar-se regularmente melhora a função cardiovascular, fortalece músculos e ossos, reduz inflamações e contribui para o equilíbrio emocional. [5]
Gerenciamento do estresse: O estresse excessivo pode afetar a saúde mental e física, aumentando a vulnerabilidade a diversas doenças. Estratégias como meditação e técnicas de relaxamento ajudam a reduzir esse impacto. [6]
Evitar substâncias nocivas: O uso de tabaco, álcool em excesso e outras drogas compromete a saúde de diferentes formas, acelerando processos inflamatórios e aumentando o risco de doenças graves. [7]
Conexão social e relacionamentos saudáveis: Ter relações interpessoais de qualidade está associado a menor risco de depressão, maior longevidade e melhor adesão a hábitos saudáveis. [8]
Alimentação saudável: A base de qualquer processo de promoção da saúde, a alimentação adequada pode reduzir o risco de doenças e melhorar o funcionamento do organismo – além de dar suporte para os demais pilares.
Não é novidade para ninguém que uma alimentação saudável é essencial para a saúde, especialmente para os nutricionistas. Mas será que compreendemos completamente como ela interage com os outros pilares do estilo de vida? A relação entre alimentação, sono, exercício, estresse, conexões sociais e o uso de substâncias vai muito além do que costumamos considerar – e entender essas conexões pode transformar a forma como abordamos a nutrição na prática.
Comendo para dormir, dormindo para comer
A relação entre sono e alimentação é um exemplo claro de como diferentes aspectos do estilo de vida se influenciam mutuamente. Estudos epidemiológicos mostram que indivíduos com sono insuficiente ou de má qualidade tendem a ter padrões alimentares menos saudáveis, com maior consumo de alimentos ultraprocessados, açúcares e gorduras saturadas, além de menor ingestão de frutas, vegetais e grãos integrais.
No entanto, como esses estudos apenas identificam associações, não é possível determinar se o sono inadequado leva a escolhas alimentares piores ou se uma alimentação inadequada contribui para um sono de menor qualidade. Já ensaios clínicos fornecem evidências mais diretas de causalidade: quando o tempo de sono é artificialmente reduzido, há um aumento na ingestão calórica, especialmente de alimentos ricos em carboidratos e gorduras. Esse efeito pode estar relacionado tanto ao aumento da janela de tempo disponível para comer quanto a alterações hormonais e no sistema de recompensa do cérebro, que aumentam a busca por alimentos altamente palatáveis. [9]
Por outro lado, a alimentação também pode modular a qualidade do sono. Ensaios clínicos indicam que padrões alimentares ricos em alimentos fonte de triptofano, magnésio e vitaminas do complexo B – nutrientes essenciais para a produção de serotonina e melatonina – estão associados a uma melhora na duração e na eficiência do sono. Embora esses achados indiquem uma possível relação de causa e efeito, muitos outros fatores de contexto podem influenciar os resultados. Ainda assim, não é um erro afirmar que há uma relação importante entre esses dois pilares da Medicina do Estilo de Vida [9]
Estudos recentes sobre alimentação e exercício
A relação entre exercício e alimentação é complexa e envolve múltiplos fatores fisiológicos e comportamentais. A prática de atividade física aumenta o gasto energético, mas nem sempre esse aumento resulta em um balanço energético negativo, pois o organismo pode responder com ajustes no apetite e na ingestão alimentar.
Um fenômeno conhecido como compensação energética ocorre quando a pessoa aumenta o consumo de alimentos após o exercício, o que pode reduzir ou até anular os efeitos da atividade física na regulação do peso corporal [10]. No entanto, os mecanismos por trás dessa compensação ainda não são completamente compreendidos.
Estudos indicam que, ao contrário do que se poderia esperar, fatores como o esvaziamento gástrico e a liberação de hormônios que regulam o apetite não sofrem alterações significativas após semanas de exercício regular [10]. Isso sugere que a fome pós-exercício pode ser mais influenciada por aspectos comportamentais do que por mudanças fisiológicas imediatas.
Além disso, o efeito do exercício sobre o apetite pode variar de acordo com a composição da dieta e o metabolismo individual. Um estudo investigou se a suplementação com cetonas exógenas alteraria os hormônios do apetite e encontrou impacto nesses marcadores, mas sem mudanças na percepção subjetiva da fome ou na ingestão alimentar após o exercício [11]. Isso reforça a ideia de que a regulação do apetite envolve uma interação complexa entre sinais metabólicos e percepção consciente da fome.
Em idosos, há indícios de que a atividade física pode melhorar a sensibilidade à saciedade e ajudar a controlar a ingestão alimentar, o que pode ser um fator protetor contra doenças relacionadas ao envelhecimento [12]. Por outro lado, exercícios em excesso podem gerar efeitos adversos, como prejuízos na motilidade gástrica e na absorção de nutrientes, afetando a saúde digestiva [13]. Além disso, atletas de resistência que não adequam sua ingestão energética às altas demandas do treinamento correm risco de baixa disponibilidade energética, o que pode comprometer tanto a saúde quanto o desempenho esportivo [14].
Comidas, drogas ROCK’N’ROLL e estresse
A nutrição está profundamente entrelaçada com o impacto que substâncias nocivas exercem sobre o corpo e o comportamento. O consumo de drogas e álcool pode desregular o apetite, modificar preferências alimentares e comprometer a absorção de nutrientes essenciais. Substâncias como a nicotina e a cocaína suprimem a fome, levando à redução da ingestão alimentar e aumentando o risco de saúde.
O álcool, além de substituir calorias de alimentos nutritivos, interfere na absorção de vitaminas fundamentais para o sistema nervoso, como a B1 e a B12. Além disso, hormônios envolvidos na regulação da fome e da saciedade, como a grelina e o GLP-1, participam dos mecanismos de recompensa do cérebro, o que ajuda a explicar por que o abuso de substâncias frequentemente se associa a padrões alimentares desregulados e até transtornos alimentares [15].
O estresse, por sua vez, age como uma droga silenciosa, alterando o comportamento alimentar por meio da liberação crônica de cortisol. Esse hormônio, quando em excesso, favorece a busca por alimentos altamente palatáveis, ricos em açúcar e gordura, funcionando quase como um sistema de compensação emocional.
Ao mesmo tempo, o estresse pode levar à perda de apetite em algumas pessoas, criando um padrão alimentar errático e imprevisível. Assim como ocorre com substâncias psicoativas, o estresse afeta o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) e interage com neurotransmissores ligados ao prazer e à recompensa, moldando nossas escolhas alimentares de maneiras muitas vezes automáticas e inconscientes [16]. No final das contas, seja por substâncias químicas ou pela carga emocional do dia a dia, nosso cérebro e nosso corpo reagem àquilo que vivemos – e essa resposta quase sempre passa pelo prato.
Com quem comemos influencia o que comemos?
As interações sociais desempenham um papel fundamental nas escolhas alimentares, moldando não apenas o que comemos, mas também como e por que fazemos essas escolhas. Compartilhar refeições fortalece laços afetivos, promove comunicação e cria um senso de pertencimento, tornando a comida uma ponte para conexões sociais.
Normas culturais e tradições também influenciam os hábitos alimentares, estabelecendo padrões de consumo que reforçam identidades coletivas e aproximam diferentes gerações. Além disso, as preferências alimentares podem determinar círculos sociais, aproximando indivíduos com dietas e interesses semelhantes, enquanto experiências como cozinhar juntos incentivam cooperação e trabalho em equipe [17].
Diante dessa complexidade, o nutricionista se vê desafiado a compreender essas dinâmicas, mas sua formação muitas vezes não o prepara para lidar com todas as nuances que a comida estabelece nas relações humanas, deixando lacunas que impactam sua atuação.
Uma oportunidade para ir além
A relação entre alimentação e estilo de vida nunca foi tão clara. O que comemos não está dissociado do nosso sono, do nosso nível de atividade, das nossas relações sociais ou da forma como lidamos com o estresse. Esses fatores se influenciam mutuamente e moldam a saúde de maneira profunda.
É exatamente essa visão ampliada que a Nutrição Comportamental sempre sustentou: alimentação não é apenas o que se come, mas também o como, o porquê e em qual contexto.
Por isso, o tema do 11º Congresso Brasileiro de Nutrição Comportamental – “Estilo de Vida e Comportamento Alimentar” – é a representação perfeita dessa abordagem. Não é coincidência que o evento conte com a participação de Bruno Colontoni, presidente do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida (CBMEV), reforçando a importância de conectar ciência e prática para um olhar mais completo sobre a nutrição.
Se alimentar vai além de comer, atuar como nutricionista vai além de prescrever. Este congresso é a oportunidade de consolidar essa mudança de paradigma.
11º Congresso Brasileiro de Nutrição Comportamental
Dias 25 e 26 de abril, em São Paulo
Ingressos em: https://nutricaocomportamental.com.br/congresso-nc-2025/
Este não é apenas mais um congresso. É um evento que vai mudar a forma como você enxerga e pratica a nutrição. E a pergunta que fica é: como um nutricionista pode se permitir ficar de fora?
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
Referências Bibliográficas:
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