Como compreender a relação entre obesidade e depressão?  

Obesidade e depressão se influenciam mutuamente por processos inflamatórios, estresse e hábitos alimentares. Saiba como isso impacta a nutrição!


A relação entre obesidade e depressão vai além das estatísticas, envolvendo complexas interações biológicas, psicológicas e sociais que desafiam a prática clínica. Para nutricionistas, compreender essa conexão bidirecional é fundamental para promover um verdadeiro bem-estar, em seu sentido mais amplo. Entenda como processos inflamatórios, distúrbios do sono, padrões alimentares e o ambiente familiar contribuem para esse ciclo vicioso.  

A relação bidirecional entre obesidade e depressão  

A obesidade é caracterizada pelo acúmulo excessivo de tecido adiposo, resultando em alterações metabólicas e inflamatórias, enquanto a depressão envolve alterações persistentes no humor e na cognição, frequentemente acompanhadas por fadiga e baixa autoestima [1-3]. A interação entre essas condições cria um ciclo complexo no qual uma pode potencializar a outra, tornando o manejo desafiador [1]. 

Um dos principais mecanismos que explicam essa relação é o processo inflamatório no tecido adiposo. A obesidade está associada a um estado inflamatório crônico, caracterizado pela secreção desregulada de citocinas pró-inflamatórias e hormônios, como a leptina [1].  
 
O aumento sustentado da leptina no plasma pode levar à resistência a esse hormônio, resultando em desregulação do apetite e ganho de peso. Estudos demonstram que concentrações elevadas de leptina estão positivamente correlacionadas com sintomas depressivos em indivíduos com obesidade, embora essa relação possa ser influenciada por fatores adicionais [4]. 
 
Além disso, citocinas inflamatórias podem influenciar neurotransmissores envolvidos na regulação do humor, favorecendo o desenvolvimento da depressão [1,5]. 

O estresse crônico também é um fator central nessa interação. A hiperativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) durante eventos de estresse leva ao aumento sustentado dos níveis de cortisol, o que pode desencadear alterações metabólicas, como a resistência à insulina e o acúmulo de gordura visceral [1].  
 
Estudos indicam que indivíduos submetidos a altos níveis de estresse apresentam maior probabilidade de desenvolver tanto obesidade quanto depressão, uma vez que o cortisol também impacta negativamente neurotransmissores como serotonina e dopamina, fundamentais na regulação do humor [1,6]. 

Os distúrbios do sono são outro elo entre essas condições. A privação do sono está associada a alterações hormonais que favorecem o aumento do apetite, incluindo redução da leptina e aumento da grelina, hormônio que estimula a fome. Adicionalmente, a desregulação do sono pode levar à ativação excessiva do eixo HPA e ao aumento da secreção de glicocorticoides, promovendo tanto a depressão quanto a obesidade [1]. 

Os padrões alimentares e a atividade física também exercem um papel fundamental nessa interação. Alguns estudos sugerem que dietas ricas em carboidratos refinados estão associadas a maior intensidade de sintomas depressivos, mas essa correlação não necessariamente implica causalidade – ou seja, ainda não é claro se os sintomas depressivos podem intensificar esse consumo ou se esse consumo pode levar aos sintomas depressivos [7]. 
 
Mas outros fatores, como estilo de vida e aspectos psicossociais, podem influenciar essa relação. A baixa ingestão de nutrientes essenciais para a regulação do humor, como ácidos graxos ômega-3 e vitaminas do complexo B, pode agravar os sintomas depressivos. Além disso, a inatividade física, comum tanto em indivíduos com obesidade quanto naqueles com depressão, está relacionada a um agravamento do humor e aumento do risco de ganho de peso [8]. 

Fatores neurobiológicos e transtornos alimentares também desempenham um papel significativo. Alterações na regulação emocional e no controle cognitivo podem levar a comportamentos alimentares transtornados, como o comer emocional e o transtorno da compulsão alimentar [9].  
 
 
O comer emocional, caracterizado pela ingestão excessiva de alimentos como uma solução para modular emoções negativas ou positivas, pode desencadear um ciclo de ganho de peso e piora na saúde mental [10]. Pacientes com compulsão alimentar relatam episódios recorrentes de ingestão excessiva de alimentos, acompanhados por sentimento de perda de controle, o que pode resultar em aumento de peso e, consequentemente, maior risco de depressão [11]. Além disso, alterações no funcionamento do córtex pré-frontal podem comprometer a tomada de decisão e reduzir o interesse em programas de controle de peso [9]. 

O ambiente familiar também influencia a relação entre obesidade e depressão. Estudos apontam que crianças com pais que sofrem de depressão têm maior probabilidade de desenvolver hábitos alimentares inadequados e baixa motivação para mudar seu estilo de vida [12]. 
 
 
A presença de distúrbios emocionais nos pais pode intensificar sintomas depressivos nos filhos e dificultar a adesão a práticas saudáveis. Esse efeito é ainda mais pronunciado em famílias onde a obesidade já está presente, criando um ciclo de gerações com doenças metabólicas e psiquiátricas. 

Diante dessa complexa interação entre obesidade e depressão, torna-se evidente que processos biológicos desempenham um papel central nessa relação. Entre esses processos, a inflamação crônica surge como um dos principais elos entre as duas condições, afetando tanto o metabolismo quanto a função cerebral. Para compreender melhor essa conexão, é essencial explorar como os mecanismos inflamatórios impactam diretamente a saúde mental e contribuem para o desenvolvimento e a manutenção da depressão. 

Inflamação e saúde mental: O papel dos processos biológicos na depressão  

Indivíduos com resistência à insulina e disfunções metabólicas frequentemente apresentam um perfil inflamatório exacerbado, o que pode predispor ao desenvolvimento de sintomas depressivos [13]. A obesidade, justamente, é um dos principais fatores que perpetuam o estado inflamatório crônico, uma vez que o tecido adiposo secreta citocinas pró-inflamatórias que influenciam a função cerebral e a saúde mental [14]. 

A ativação de vias inflamatórias no cérebro pode contribuir para a neurotoxicidade e o estresse oxidativo, fatores que prejudicam a função neuronal e promovem alterações nos circuitos responsáveis pelo humor e cognição [15]. Os mecanismos pelos quais a inflamação influencia a depressão envolvem a interação entre o sistema imunológico periférico e o sistema nervoso central (SNC). A barreira hematoencefálica, que normalmente protege o cérebro contra substâncias potencialmente danosas, pode tornar-se mais permeável na presença de inflamação sistêmica, permitindo a entrada de citocinas inflamatórias e células imunes na região cerebral [16].  
 
 
Esse processo leva a alterações na função dos neurônios e células da glia, promovendo um ambiente neuroinflamatório que compromete a neuroplasticidade e o equilíbrio de neurotransmissores como serotonina, dopamina e norepinefrina [15]. Além disso, a ativação microglial — um dos principais mecanismos de resposta imunológica no cérebro — pode induzir um estado pró-inflamatório prolongado, exacerbando os sintomas depressivos [17]. 

A inflamação crônica também afeta os processos de neurogênese, especialmente no hipocampo, uma área crucial para a regulação emocional e cognitiva. Estudos indicam que níveis elevados de citocinas inflamatórias, como IL-1β, IL-6 e TNF-α, podem inibir a proliferação neuronal e reduzir os níveis de fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), um componente essencial para a sobrevivência e regeneração neuronal [18]. Essas alterações estão associadas a déficits na memória, dificuldades cognitivas e um aumento na vulnerabilidade à depressão. 

Outro aspecto importante da relação entre inflamação e depressão é o papel do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA). A exposição prolongada ao estresse ativa esse eixo, levando ao aumento da liberação de cortisol, que por sua vez pode amplificar a resposta inflamatória e comprometer a regulação do humor. Além disso, o cortisol elevado afeta a função do hipocampo e da amígdala, contribuindo para sintomas depressivos como anedonia, fadiga e dificuldades de concentração [13]. 

Esses mecanismos evidenciam como a relação entre obesidade e depressão não pode ser dissociada da fisiologia, mas também não pode ser reduzida a ela. Se a inflamação, o estresse e a neurobiologia desempenham papéis fundamentais, as escolhas alimentares e os padrões de comportamento refletem um cenário ainda mais amplo, atravessado por experiências individuais e contextos sociais. Para o nutricionista, isso significa que estratégias eficazes de manejo devem considerar não apenas o que se come, mas também por que e como se come, reconhecendo que comer é um ato biopsicossociocultural. 

Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição. 

Referências Bibliográficas  

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