Nos últimos anos, a dieta sem glúten vem ganhando cada vez mais adeptos, em função de estudos correlacionando o glúten com aumento de permeabilidade intestinal e inflamação crônica e de sua popularização por celebridades.
Entretanto, o início precoce da dieta, antes da investigação adequada através de exames, além de não promover todos os resultados esperados, acaba por retardar o diagnóstico de muitos celíacos, impactando negativamente sua qualidade de vida e provocando complicações graves, como perdas gestacionais, demência e linfoma intestinal.
Dentre as Desordens Relacionadas ao Glúten (DRG), a Doença Celíaca (DC) é a mais estudada e foi a primeira a ser identificada, no início da Era Cristã, por Arataeus da Capadócia, que ao identificar crianças e jovens com quadro grave de desnutrição, diarreia e distensão abdominal, os chamou de Koiliacos (“aqueles que sofrem da barriga”).
Desde essa época até o século XIX, a doença permaneceu sem tratamento eficaz e somente a partir da II Guerra Mundial e da escassez de alimentos na Europa, foi possível estabelecer uma correlação entre o consumo de trigo e os sintomas e agravamento do quadro clínico. Desde então, a Ciência vem avançando, permitindo maior entendimento sobre a fisiopatologia desta condição e diagnósticos mais assertivos.
Entretanto, ainda se observa um grande desconhecimento por parte de profissionais da saúde a respeito da mesma, de seus possíveis sinais e sintomas, bem como população afetada e até mesmo quais os exames corretos para diagnosticá-la.
Até que houvesse maior entendimento sobre os mecanismos fisiopatológicos envolvidos, acreditava-se tratar apenas de uma intolerância alimentar causada por deficiência enzimática. Entretanto, já se sabe que não há deficiência de nenhuma enzima específica, considerando que o glúten é uma proteína e que os seres humanos dispõem de várias enzimas proteolíticas.
Trata-se de uma intolerância em nível mais “profundo”, que envolve o sistema imunológico, a partir do aumento da permeabilidade intestinal e da resposta inflamatória, causada pela soma de condições genéticas e ambientais, obrigatoriamente associadas à ingestão de alimentos fontes de glúten.
Esse conjunto de fatores leva ao quadro característico de inflamação e atrofia da mucosa duodenal, e interfere negativamente na absorção de nutrientes, levando ao quadro clássico de diarreia, perda de peso e deficiências nutricionais múltiplas, principalmente em crianças.
Mas é importante esclarecer que a DC pode estar presente em sua forma oligossintomática, com sintomas menos específicos (por exemplo: constipação intestinal, edema, quadros de neuropatia, alterações no humor, fadiga crônica e dores generalizadas) ou mesmo em sua forma assintomática.
Outro ponto importante a ser considerado, é que a DC pode afetar pessoas de ambos os sexos (apesar de mais comum em mulheres), de todas as etnias e idades e ainda pode se manifestar apenas com lesões na pele, conhecida como Dermatite Herpetiforme (DH).
Para o diagnóstico correto, é necessário realizar os testes sorológicos, dosando os anticorpos IgA total + IgA anti-transglutaminase, além da endoscopia digestiva com biópsia duodenal, antes da exclusão do glúten, para evitar resultados falso negativos.
Nos últimos anos outra DRG, a Sensibilidade do Glúten Não Celíaca (SGNC) foi identificada numa parcela ainda maior de pessoas e com quadro diversificado de sintomas, que vão desde alterações digestivas a quadros neurológicos, passando por alterações de humor e fadiga, déficit de concentração e “mente enevoada”, além de alta correção com alterações tireoidianas.
Até o momento não se dispõe de marcador biológico específico para identificar esta condição e o diagnóstico é por exclusão prévia da DC, de alergia ao trigo e de outras doenças inflamatórias e intestinais. Assim, o teste clínico de exclusão de glúten é a última alternativa (e não a primeira) para identificá-la.
Também é importante destacar que pode não ser exatamente o glúten o agente causador e sim, outros componentes do trigo e demais cereais, como os frutanos e/ou as proteínas inibidoras de alfa-amilase e da tripsina.
Assim, a recomendação atual é que a exclusão de glúten seja feita por cerca de 30 dias, com reavaliação de sinais e sintomas, após a realização de todos os exames necessários.
Após o diagnóstico médico, a atuação do Nutricionista é essencial para orientação a respeito da dieta totalmente livre de glúten e de contaminação cruzada, além da identificação de deficiências nutricionais e suplementação adequada, correção de hábitos alimentares, treinamento em relação a leitura de rótulos, compra, armazenamento e preparo dos alimentos, orientação da família e demais pessoas envolvidas nos cuidados com a alimentação.
E por fim, é importante ressaltar que o diagnóstico correto é necessário, pois a dieta livre de glúten e de contaminação, independente da DRG envolvida, deve ser feita por toda a vida, em todos os momentos, para garantir a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos afetados.
Artigo por:
Juliana Crucinsky – Nutricionista – CRN 01100190
Mestre em Alimentação, Nutrição e Saúde
Consultora Técnica da Acelbra RJ e da Fenacelbra
Em parceria com Mandala Comidas Especiais
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