A alimentação não é apenas uma necessidade biológica; é um direito humano fundamental, essencial à vida, saúde e dignidade. Esse direito foi reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cujo artigo 25 estabelece que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação“.
No Brasil, o Art. 6º da Constituição Federal, após uma emenda constitucional em 2010, passou a afirmar: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.
O direito à alimentação adequada vai além de garantir a ausência da fome, trata-se de assegurar o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e que respeitem a diversidade cultural – a alimentação adequada não apenas protege contra a sensação de fome, mas também promove saúde, inclusão e bem-estar coletivo, evidenciando a importância de sua defesa e efetivação.
No Brasil, as desigualdades sociais, econômicas e territoriais continuam sendo obstáculos críticos à efetivação do direito humano à alimentação adequada. Embora a fome seja a face mais extrema da insegurança alimentar, ela não é a única. Barreiras como infraestrutura precária, desemprego, informalidade, e o alto custo de vida impactam severamente o acesso a alimentos, tanto em áreas rurais quanto nos grandes centros urbanos.
Para muitas comunidades, alimentos ultraprocessados acabam sendo a opção mais viável devido ao custo e à disponibilidade, enquanto alimentos frescos e minimamente processados tornam-se inacessíveis.
Essa dinâmica reflete uma transição nutricional que exacerba problemas de má nutrição e obesidade, frequentemente coexistentes.
Os sistemas alimentares atuais promovem uma oferta desequilibrada entre as categorias de alimentos, agravando os desafios para a Nutrição. Essas questões reforçam a necessidade de atuação estratégica do nutricionista, que deve ir além do atendimento individual para contribuir na construção de soluções coletivas.
Nesse contexto, o nutricionista deve atuar em múltiplos níveis. No atendimento individual, é essencial que as orientações sejam culturalmente relevantes e ajustadas à realidade socioeconômica do paciente. No nível comunitário, a promoção de ações educativas e intervenções locais pode fortalecer redes de apoio e fomentar a inclusão social por meio da alimentação. No âmbito político, o nutricionista tem o papel crucial de defender políticas públicas que combatam a fome, promovam a segurança alimentar e valorizem alimentos locais.
Entre as abordagens mais relevantes, a Nutrição Comportamental destaca-se como uma ferramenta com grande potencial.
Embora erroneamente vista como elitista, suas estratégias podem ser adaptadas para diferentes realidades, ajudando pessoas em vulnerabilidade social a estabelecerem uma relação mais equilibrada com a alimentação. Essas práticas mostram que educar para a autonomia alimentar vai além de ensinar a comer; é um meio de promover dignidade e saúde, independentemente do contexto socioeconômico.
Apesar disso, há resistências dentro da própria profissão. Críticas ao envolvimento do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) em políticas públicas ilustram uma visão equivocada de que tais posicionamentos são políticos no sentido partidário, e não éticos.
Garantir o direito à alimentação é um imperativo moral da profissão, não um debate ideológico. Ignorar esse compromisso é desvirtuar a essência do papel do nutricionista, que deve sempre priorizar a dignidade humana e o bem-estar coletivo.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um exemplo vivo de como o nutricionista pode atuar como agente transformador. A prática vai muito além da mera prescrição de uma dieta, exigindo compreensão das dinâmicas locais, trabalho em equipe e o desenvolvimento de soluções que fortaleçam comunidades e reduzam desigualdades.
Promover ambientes alimentares saudáveis, valorizar alimentos regionais e criar estratégias para combater estigmas são ações que impactam diretamente a saúde coletiva.
Mas enquanto o SUS oferece um potencial transformador, as Secretarias de Saúde frequentemente falham em estruturar redes de apoio efetivas para lidar com demandas complexas, como os transtornos alimentares (TA) e o comer transtornado desordenados, cada vez mais prevalentes entre populações em situação de insegurança alimentar.
A centralização de decisões, a escassez de profissionais capacitados e a falta de integração entre os serviços são reflexos de gestões que priorizam interesses políticos ou burocráticos em detrimento de necessidades reais da população.
Essa negligência alimenta um cenário em que o cuidado integral se torna uma promessa vazia, agravando tanto as desigualdades quanto o sofrimento de pacientes que enfrentam a ausência de acolhimento e suporte adequados. Capacitar nutricionistas e promover a articulação entre equipes multidisciplinares são passos urgentes para romper com esse ciclo de negligência e construir um cuidado que realmente atenda às demandas do território.
A atuação do nutricionista transcende o entendimento sobre as propriedades dos alimentos, posicionando-se como um compromisso ético com a transformação social. Compreender a alimentação como um direito humano implica reconhecer sua dimensão cultural, política e de cidadania, o que exige ações que ultrapassem o que é ensinado nas faculdades. Se queremos mudança, o profissional tem a responsabilidade de integrar ciência e sensibilidade, buscando soluções que respeitem as singularidades dos indivíduos e comunidades.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
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