Na história, a Nutrição passou de um campo relativamente novo e pouco compreendido para uma área de intensa pesquisa científica e interesse social. De uma ciência inicialmente voltada para atender enfermos e descobrir as necessidades de nutrientes básicos, a Nutrição hoje ganhou proporções culturais e políticas.
Mas será que a ciência da Nutrição está ciente da sua influência cultural?
Vemos, cada vez mais, crianças e adultos mencionando alimentos não pelo que são, mas pelos nutrientes que contêm — “proteína”, “carboidrato”, “gordura” — como se esses elementos pudessem substituir a complexidade e o significado dos alimentos. A redução de alimentos a nutrientes (nutricionismo) gerou um descompasso de significados, onde alimentos passam a ser encarados como veículos funcionais e padronizados, desprovidos de contexto.
Nesse processo, estamos testemunhando a construção de uma cultura nutricional fragmentada, na qual a escolha alimentar muitas vezes responde mais a um conjunto de números (calorias, proteínas, vitaminas) do que à história, identidade e valores de uma cultura.
Quem está influenciando quem?
A Nutrição, como ciência, é um esforço para entender como os alimentos afetam o corpo e como isso se traduz em saúde. Mas o que talvez não se perceba com tanta clareza é que ao longo do tempo, a ciência da Nutrição tem se desenvolvido em paralelo às mudanças sociais e culturais, refletindo como cada época e contexto específico interpreta a alimentação.
No Brasil, uma realidade complexa se revela: enquanto muitos ainda sofrem com a insegurança alimentar e a fome, há também uma valorização crescente de corpos idealizados, malhados e musculosos. Hoje, por exemplo, esse cenário impulsiona uma hipervalorização das proteínas — tanto no mundo acadêmico quanto no cotidiano das pessoas, que veem as prateleiras dos supermercados lotadas de alimentos fortificados.
Alimentos que antes eram preparados e consumidos dentro de rituais e tradições passam a ser vistos como pacotes de nutrientes isolados, uma prática que descontextualiza a alimentação e pode levar a uma perda de identidade cultural – e não só pode, como já leva: levantamentos seriados apontam cada vez mais uma redução do consumo de arroz e feijão pela população brasileira.
Cada cultura tem seus próprios alimentos e práticas que refletem séculos de história, geografia, religião e clima. Esses sistemas alimentares não surgiram por acaso; são a manifestação de um conhecimento empírico transmitido por gerações, adaptado às necessidades e condições de cada comunidade.
Ao isolar nutrientes específicos e recomendar seu consumo isolado, a Nutrição acaba muitas vezes incentivando um distanciamento de um consumo consciente e sustentável. Esse distanciamento entre o que a cultura alimenta e o que a ciência apresenta como ideal pode ser prejudicial e se reflete em fenômenos como a rotulagem exagerada de alimentos, o uso cotidiano de terminologias científicas e a crescente fragmentação das refeições.
O paradoxo que se observa na constante crítica aos alimentos ultraprocessados, concomitante com a valorização desses mesmos produtos quando são formulados e rotulados com supostos benefícios, é uma questão notável. Ao adicionar proteínas, fibras ou vitaminas, transforma-se um alimento em algo aparentemente superior, mas que continua sendo um produto ultraprocessado, com todas as suas características.
A questão aqui não é desvalorizar os alimentos fortificados, mas reconhecer que, assim como uma bolacha recheada, eles devem ser encarados como ultraprocessados e podem, sim, fazer parte de uma alimentação saudável — desde que considerados dentro de um contexto alimentar mais amplo e coerente.
De fato, o que precisamos valorizar é a cultura alimentar e os alimentos in natura e minimamente processados, que representam séculos de história, sabedoria e adaptação às condições locais. Esses alimentos, mais do que fórmulas de nutrientes, trazem com eles uma riqueza simbólica e nutricional que enriquece a alimentação e promove saúde de maneira integral.
A expressão cultural a frente do desenvolvimento científico
Algumas combinações alimentares exemplificam como práticas culturais podem coincidir com benefícios nutricionais, formando um sistema de saúde natural, acessível e enraizado nos costumes. Estes são alguns exemplos de alimentos que mostram como a cultura, muitas vezes, desenvolveu combinações que a ciência apenas depois veio a confirmar em termos nutricionais.
1. Arroz e Feijão – Brasil
A clássica combinação brasileira de arroz e feijão é rica em aminoácidos essenciais. Essa união é também um símbolo de tradição, sendo parte central de milhões de refeições diárias no Brasil, e reflete uma estratégia histórica de sustento e saúde – infelizmente em declínio.
2. Milho e Feijão – Mesoamérica
Na América Central, a combinação de milho e feijão foi, por séculos, a base da alimentação de populações indígenas. O milho, rico em carboidratos, é balanceado pelo feijão, que fornece proteínas, fibras e minerais. Juntos, são uma fonte completa de proteína e refletem a importância das práticas alimentares locais que, além de satisfazerem necessidades nutricionais, criam coesão social e identidade.
3. Gergelim e Peixes – Japão
No Japão, a prática de consumir peixes com sementes de gergelim exemplifica uma combinação nutritiva que apoia a saúde cardiovascular e mental. O peixe é rico em ômega-3, enquanto o gergelim fornece minerais como cálcio e magnésio. Esta combinação, além de ser saborosa, simboliza a conexão japonesa com o mar e com práticas alimentares cuidadosamente balanceadas.
4. Alho e Azeite – Mediterrâneo
Na culinária mediterrânea, o alho é frequentemente combinado com azeite de oliva em pratos como o pesto ou o sofrito. Esta combinação não só oferece benefícios antioxidantes e anti-inflamatórios, como também reflete a simplicidade e a riqueza de uma alimentação que valoriza ingredientes frescos e locais.
A interseção entre ciência e cultura na nutrição é inevitável e pode ser benéfica, mas é preciso cautela. Frases como “comer proteína” ou “preciso de mais fibra” são falas que, embora corretas do ponto de vista técnico, escondem uma desconexão cultural com o alimento.
Será que as pessoas começaram a comer arroz e feijão diariamente por conta da combinação de aminoácidos essenciais? E será que faz sentido recomendar azeite e alho por conta de benefícios biológicos?
Se, por um lado, não podemos dissociar ciência e cultura, no ideal, a ciência da nutrição deve aprender com a cultura, e não a influenciar diretamente. A alimentação é um dos aspectos mais fundamentais e simbólicos da humanidade, e reduzir a comida a nutrientes é esquecer a complexidade e o poder que ela tem de nos unir, de nos identificar e de expressar valores.
Ao ouvir e respeitar o que cada cultura nos ensina sobre alimentação, a ciência se torna não só mais abrangente e consciente, mas também menos invasiva. Podemos, sim, entender os nutrientes e suas funções, mas sem perder de vista que alimentos são um meio de conexão social e de expressão humana.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
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