É certo que você já ouviu o termo “chocólatra”, ou variações do tipo “viciado em doces” e “viciado em açúcar”. Expressões deste gênero tendem a ser encontradas em discursos de indivíduos para descrever os próprios comportamentos e preferências alimentares, mas, inconscientemente, também são responsáveis por dar um peso extremamente negativo ao comer e ao gostar – o que, inevitavelmente, pode levar a uma relação bastante negativa e complicada com a comida.
Ao mesmo tempo, em eventuais matérias jornalistas, não é difícil encontrar manchetes do tipo “o efeito do açúcar no seu corpo é o mesmo da cocaína”. Será que de fato existem evidências que permitam esta equivalência entre açúcar e substâncias que causam vício? E como podemos lidar com pacientes que alegam ser viciados em algum alimento específico?
Do latim vitium (falha ou defeito), “vício” é empiricamente entendido como um comportamento repetitivo que causa danos.
No âmbito da psiquiatria, a última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) traz os seguintes critérios para a caracterização do vício em substâncias:
- Tolerância (adaptação ao uso da substância, com aumento gradual do seu uso)
- Abstinência (sintomas físicos na ausência da substância)
- Usar mais do que o pretendido
- Desejo (sem sucesso) de parar de usar
- Muito tempo gasto no uso da substância
- Uso contínuo sem considerar problemas
- Desistências de atividades para o uso da substância
- Uso recorrente, impedindo a realização de outras atividades
- Uso recorrente, com prejuízo físico para a realização de outras atividades
- Uso contínuo apesar dos problemas sociais
- Fissura pelo uso da substância
Critérios relacionados a substâncias específicas X Critérios relacionados ao comportamento
Para ser diagnosticado um vício leve é necessária a presença de 2 ou 3 critérios; para um vício moderado entre 4 e 5 critérios; e para um vício severo, 6 ou mais critérios devem ser atendidos.
Nota-se que a caracterização de vício para a Associação Americana de Psiquiatria engloba grupos de critérios que se relacionam diretamente com respostas fisiológicas frente ao uso de uma substância e critérios que se relacionam ao comportamento frente a uma substância.
Se você acompanha a Academia da Nutrição, provavelmente viu a publicação “Nem frescura, nem gula: o que Nutricionistas precisam saber sobre Transtornos Alimentares?” e pode ter notado que alguns dos critérios comportamentais relacionados ao vício são bastante similares a alguns critérios de transtornos alimentares, especialmente o Transtorno de Compulsão Alimentar.
Assim, tentar equiparar um comer excessivo e transtornado com um vício baseado somente em manifestações comportamentais parece ser redundante do ponto de vista clínico, e ainda colaboraria com um estigma adicional ao paciente.
Mas será que o açúcar, como substância, pode viciar?
Resgatando conceitos básicos de bioquímica, é difícil conseguir classificar o açúcar como substância, já que por ser um dissacarídeo, ele é, na verdade, a combinação de duas substâncias: glicose e frutose. Aplicando o mesmo raciocínio ao chocolate, a equivalência fica ainda mais difícil já que traz muitos outros componentes em sua composição.
Emerge então a reflexão sobre o estimulo de prazer frente a exposição ao sabor doce que, por si só, já coloca em cheque a ideia do poder viciante do açúcar como substância por algumas duas razões básicas: se assim fosse, não seria possível obter o prazer de um estímulo doce obtido por algum edulcorante; e outros alimentos ricos em glicose, como pão e massas, ou ricos em frutose, como o mel, também deveriam ter o mesmo efeito sobre as pessoas – mas não existem relatos de indivíduos com abstinência de macarrão, ou ainda com uma tolerância elevada ao pão, sendo necessário um consumo progressivo para suprir a necessidade.
Ainda assim alguns estudos controlados com ratos têm explorado o possível efeito viciante do açúcar e equipará-lo com o abuso de substâncias ilícitas. O resultado, porém, apenas confirma que não é possível fazer tal equivalência – ainda que muitos jornalistas encontrem uma brecha para tal.
O que acontece, na verdade, é que o consumo de açúcar, de fato, ativa o sistema de recompensa e os receptores de dopamina – da mesma forma que o abuso de substâncias como a cocaína, mas também da mesma forma que o sexo, o dinheiro, a música, o amor, o contato físico e tantas outras situações também ativam o mesmo sistema.
Apenas a ativação dos receptores de dopamina não determina o poder de vício.
Diferente do açúcar ou qualquer outro alimento, substâncias como a cocaína tem a capacidade de diminuir a quantidade de receptores de dopamina, tornando necessário o aumento do estímulo (logo, maior quantidade da droga) para que a mesma sensação seja reproduzida.
Mesmo em quantidades extremamente exageradas, o açúcar não altera os mecanismos neurológicos do sistema de recompensa, e portando, não tem a capacidade de promover o vício.
Então como lidar com um paciente “viciado” em açúcar?
De todo este contexto, até aqui explicado, podem emergir alguns cenários na prática clínica do nutricionista, sendo que este precisa estar preparado para lidar com as situações, com base em evidências: quando o paciente se identificar como viciado em açúcar, doces e/ou chocolate e pedir ajuda, entenda, em primeiro lugar, as quantidades ingeridas para descartar a falsa sensação de descontrole (muito comum em tempos de cultura da dieta).
Caso haja, de fato, um consumo além do comum, trabalhe junto com o paciente em um plano alimentar que traga saciedade e satisfação, sem excluir nenhum alimento – e proponha exercícios que promovam o autoreconhecimento das emoções e dos sinais de fome.
Diferente das drogas lícitas e ilícitas, os alimentos são essenciais à vida – qualquer tentativa de equiparação das duas coisas carrega em seu cerne desconhecimento de neurobiologia e/ou má fé.
Levando em conta que todos estão inseridos em contextos socioculturais, a promoção de uma alimentação saudável realista pode incluir o açúcar (e suas variações em diversas preparações) e, sempre que necessário, os nutricionistas devem esclarecer dúvidas e mitos que rodeiam (e prejudicam) a alimentação das pessoas.
Referências Bibliográficas
- Alvarenga, MS, Dahás L, Moraes C. Ciência do Comportamento Alimentar. Editora Manole, 2021.
- American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5). Arlington: American Psychiatric Publishing; 2013.
- Di Nicolantonio JJ, O’Keefe JH, Wilson WLSugar addiction: is it real? A narrative reviewBritish Journal of Sports Medicine 2018;52:910-913.
- Sketriene D, Battista D, Lalert L, Kraiwattanapirom N, Thai HN, Leeboonngam T, Knackstedt LA, Nithianantharajah J, Sumithran P, Lawrence AJ, Brown RM. Compulsive-like eating of high-fat high-sugar food is associated with ‘addiction-like’ glutamatergic dysfunction in obesity prone rats. Addict Biol. 2022 Sep;27(5):e13206.
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