No cenário de constante crescimento populacional e esgotamento de recursos planetários que surge a preocupação dos cientistas em estabelecer padrões alimentares que sejam sustentáveis tanto à saúde do ser humano como também à saúde planetária.
Atualmente, os sistemas alimentares, centrados em pecuária e monoculturas, são altamente prejudiciais ao meio ambiente. O uso de enormes áreas para uma plantação sem diversidade ou para a criação de gado acaba por transformar a região num enorme emissor de gases de efeito estufa e deteriorar a Terra.
Além disso, neste sistema é observado o uso irresponsável de agrotóxicos e outras substâncias, e também dos recursos naturais, como a água.
De acordo com a Global Footprint Network, uma organização internacional que calcula a pegada ecológica, em 29 de julho de 2019, nós atingimos o ponto máximo de uso de recursos naturais que poderiam ser renovados, para este ano de 2019.
Ou seja, a partir desta data, todos os recursos usados, no ano, para a nossa sobrevivência, como água, mineração, extração de petróleo, consumo de animais, plantio de alimentos, estão esgotados e não seremos capazes de repor nas mesma quantidades. Estamos em dívida com a terra.
Em conjunto com este esgotamento temos em nosso radar as consequências do crescimento populacional.
Como vamos alimentar cerca de 10 bilhões de pessoas, de forma nutricionalmente adequada e saudável, sem acabar com o planeta Terra?
E foi visando esta questão que a Comissão EAT-Lancet, do The Lancet, lançou, em 2019, um relatório com propostas de mudanças na dieta e nos sistemas alimentares padrão que são capazes de manejar e promover tanto a saúde individual quanto planetária.
O que é The Lancet e como ela se relaciona com uma alimentação mais sustentável?
A The Lancet é uma das mais famosas revistas científicas. Voltada para a área médica, ela não apenas veicula testes clínicos ou artigos, como também traz maior atenção às questões da saúde coletiva.
Além deste papel de veículo científico, a revista também organiza comissões nas quais são produzidos grandes relatórios voltados para questões urgentes e que afetam o mundo inteiro, como é o caso da urgência em se encontrar uma alimentação saudável ao ser humano e ao meio ambiente.
A fim de trazer alternativas, influenciar e intervir em políticas, para contornar está problemática, houve então a comissão EAT-Lancet, que organizou o relatório “Nossa Alimentação no Antropoceno: Dietas Saudáveis de Sistemas Alimentares Sustentáveis”, no qual é realizada a primeira tentativa de estabelecer metas científicas e universais a todo o sistema alimentar.
Dietas Saudáveis de Sistemas Alimentares Sustentáveis
O documento publicado pela comissão EAT-Lancet é o resultado de uma extensa pesquisa, produzida por 37 cientistas de 16 diferentes países e que visa o estabelecimento de metas e reflexões que podem, até certo ponto, ser utilizadas por todos os países.
A justificativa e importância de se ter um documento que funcione a nível mundial se dá na premissa de que todos os países serão afetados, cada um de seu modo, pelo constante crescimento populacional e esgotamento de recursos naturais.
O Professor Johan Rockstrom, do Instituto Potsdam de Pesquisas sobre o Impacto Climático e Centro de Resiliência de Estocolmo, coloca que, se medidas não forem tomadas com urgência, o mundo corre o risco de não cumprir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e do Acordo de Paris. Acordo este que foi assinado por 195 países e tem um papel muito importante na decisão de como será o futuro do planeta Terra.
O documento lançado pelo EAT-Lancet é bastante completo e diz respeito a mais do que a alimentação, ele também engloba todos os aspectos dos Sistemas Alimentares. É construído a partir de um objetivo único, duas diferentes metas e cinco estratégias que visam o sucesso deste objetivo.
O objetivo único do EAT-Lancet
O documento traz como seu principal objetivo conseguir dietas de saúde planetária para quase 10 bilhões de pessoas.
Isso não é apenas um desafio porque vem acompanhado de diversas mudanças pelas quais sabe-se que o planeta vai passar, como diminuição dos recursos naturais e aumento populacional, mas também pelo cenário que já temos: mais de 820 milhões de pessoas ainda não têm comida suficiente, enquanto o número de pessoas que consomem dietas insalubres e prejudiciais à saúde vêm crescendo cada vez mais.
É neste cenário de uma produção e distribuição de alimentos insuficiente, somado aos crescentes prejuízos em saúde, que a comissão EAT-Lancet desenvolveu alvos científicos globais para dietas saudáveis e produção sustentável de alimentos.
Para isso, a comissão se concentrou em 2 principais pontos do sistema alimentar:
- o consumo final → a elaboração de uma dieta saudável ao indivíduo;
- produção de alimentos → a promoção de uma produção sustentável de alimentos.
O que seria a Dieta Saudável e a Produção Sustentável?
O relatório traz que foi realizado um esforço maior em se perceber o impacto das dietas sobre o meio ambiente e diversos estudos concluíram que uma alimentação rica em vegetais e com menos alimentos de origem animal é responsável por maiores benefícios à saúde e ao meio ambiente.
Diante disso, a Comissão foi capaz de desenvolver metas científicas globais para a dietas saudáveis e produção de alimentos.
Sendo assim, foi criado um “espaço operacional seguro” para os diferentes grupos de alimentos. Isto, nada mais é que, um intervalo de quantidades de alimentos que traz benefícios à saúde individual, ao mesmo tempo em que garante uma produção sustentável de alimentos.
As metas científicas que definem um espaço operacional seguro para sistemas alimentares permitem avaliar quais dietas e práticas de produção de alimentos juntas vão permitir a realização dos ODS e do Acordo de Paris.
As metas do Eat-Lancet
Dietas saudáveis
O documento define dieta saudável como “[…] têm um ótimo consumo calórico e consistem em grande parte duma diversidade de alimentos à base de plantas, baixas quantidades de alimentos de origem animal, contêm gorduras não saturadas ao invés de saturadas, e quantidades limitadas de grãos refinados, alimentos altamente processados e açúcares adicionados”.
Tendo isso em mente e ainda buscando uma produção mais sustentável, o relatório traz uma tabela de indicação do consumo ideal diário, em gramas e em kcal, de determinados grupos alimentares; e que vai de acordo com o espaço operacional seguro, comentado acima.
Além disso, ele também coloca que os cálculos realizados na pesquisa, trouxeram uma estimativa de que a adoção da dieta planetária pode prevenir cerca de 11 milhões de mortes anuais.
Apesar da necessidade de uma ação global urgente, o documento também traz a importância de que a dieta siga refletindo a cultura, geografia e demografia da população e indivíduos, levando então em consideração que cada país aplicará estes intervalos à sua maneira.
A transformação exigirá mudanças substanciais na dieta: mais do que o dobro no consumo de alimentos como frutas, vegetais, legumes e nozes, e uma redução de mais de 50% no consumo global de alimentos menos saudáveis como açúcares adicionados e carne vermelha.
Produção mais sustentável de alimentos
a fim de estabelecer o que seria uma produção sustentável de alimentos, a Comissão pressupõe que o mundo seguirá com as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris, ou seja, que haverá tentativas de manter o aquecimento global em até 2oC e haverá a descarbonização do sistema de energia global, até 2050.
Também, o relatório traz como necessária uma mudança na agricultura mundial: é preciso uma produção mais sustentável de alimentos e a terra deve deixar de ser uma fonte de carbono para se tornar um dreno do gás.
A comissão também propõe limites para a produção global de alimentos: ela deve permanecer reduzida, dessa forma há menos risco de atingir níveis irreversíveis e gerar maiores e mais complicadas consequências ambientais.
As dificuldades em se colocar a dieta planetária em prática
Apesar de toda urgência em se aplicar a estrutura de dieta e produção de alimentos apresentada pela Comissão, ela também reconhece que há inúmeras questões que envolvem e dificultam este processo.
Ao que tudo indica, é sim possível ter um sistema alimentar capaz de fornecer dietas saudáveis para uma população de 10 bilhões de pessoas, mas isso requer uma combinação de mudanças substanciais nos padrões alimentares, deixando-o mais baseado em plantas, além da redução drástica das perdas, desperdícios e melhorias na produção.
Sendo assim, o documento também traz 5 estratégias para uma grande transformação alimentar que vão além do cunho individual.
Sim, todos podemos assumir medidas sustentáveis e elas são altamente válidas, mas também é importante que os governos e demais organizações estejam alinhadas a fim de se ter um resultado mais efetivo.
Estratégia 1 – Procurar obter um compromisso internacional e nacional para mudar para dietas saudáveis.
Uma forma de se colocar esta estratégia em prática é através da melhoria do acesso, físico e financeiro, das populações sobre os alimentos in natura ou minimamente processados.
Também, mudanças na regulamentação do marketing de alimentos e acesso a informações de saúde pública e sustentabilidade são medidas plausíveis.
Estratégia 2 – Reorientar as prioridades agrícolas de produção de grandes quantidades de alimentos para produzir alimentos saudáveis
Aqui, cabe a mudança nas políticas agrícolas e marinhas; elas devem produzir alimentos nutritivos, que apoiem a saúde humana e ambiental.
Atualmente, temos uma parte das plantações destinadas à colheita de monoculturas e produtos usados para a ração animal, o que vêm prejudicando a biodiversidade da terra; além disso, a questão da agropecuária deve ser colocada em pauta e considerada de acordo com o contexto de cada país.
Estratégia 3 – Intensificar de maneira sustentável a produção de alimentos para aumentar a produção de alta qualidade
O sistema de produção atual precisa de uma verdadeira revolução agrícola, desta vez baseada na sustentabilidade. São necessárias melhorias na eficiência do uso de fertilizantes, água, reciclagem de fósforo, redistribuição do uso de nitrogênio, entre outras questões.
Estratégia 4 – Governança forte e coordenada da terra e dos oceanos
O documento traz a necessidade da implementação de uma política de expansão zero de novas terras agrícolas em ecossistemas naturais e florestas ricas em espécies; além do urgente aprimoramento da gestão dos oceanos do mundo, para que sejam usados de forma responsável e sem prejudicar os ecossistemas.
Estratégia 5 – Reduzir, pelo menos pela metade, das perdas e os desperdícios de alimentos.
São necessárias ações tanto individuais como governamentais para diminuição do desperdício de alimentos!
Além de representar um real desperdício, esses alimentos não consumidos acabam se tornando um enorme emissor de gases de efeito estufa, piorando ainda mais a situação do nosso ecossistema.
Devem então ser aplicadas soluções tecnológicas ao longo de toda a cadeia alimentar, ou seja, desde a produção até o momento de jogar fora os restos de alimentos. Deve-se ter melhoria na infraestrutura pós-colheita, no transporte de alimentos, no seu processamento e envase, além das políticas públicas de conscientização acerca do desperdício doméstico.
E estes foram os levantamentos da Comissão EAT-Lancet, eles vão além, ou seja, não apenas trouxeram a problemática a tona como também tiveram a iniciativa de trazer estudos, documentos e estratégias que, se verdadeiramente adotadas, são capazes de ter impacto no planeta como o conhecemos e como as futuras gerações virão a conhecer.
Todas as ações são urgentes, já não se tem muito tempo de contornar a atual situação, mas sabe-se que há sim espaço para o desenvolvimento de sistemas alimentares planetários, que visam a melhoria da saúde humana e sustentabilidade ambiental.
Já conhecia este material, Nutri?
Aproveite para deixar sua opinião sobre o documento “Dietas saudáveis a partir de sistemas alimentares sustentáveis: Alimento, Planeta e Saúde”!
E para seguir estudando mais sobre práticas alimentares sustentáveis, vem com a gente explorar mais a Academia da Nutrição.
Artigo: Nutrição e Sustentabilidade: como podemos prevenir o desperdício de alimentos?
Artigo: O direito à alimentação e à nutrição e seus desafios
Ah, e se você tiver interesse em conferir o relatório completo, confira abaixo!
Referências Bibliográficas
EAT-Lancet Commission. Dietas Saudáveis A Partir De Sistemas Alimentares Sustentáveis: Alimento, planeta e saúde. Relatório Sumário. This report was prepared by EAT and is an adapted summary of the Commission Food in The Anthropocene: the EAT-Lancet Commission on Healthy Diets From Sustainable Food Systems. [periódico eletrônico] 2020 [citado em março de 2023. Disponível https://eatforum.org/content/uploads/2019/04/EATLancet_Commission_Summary_Report_Portuges
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