Quantas vezes você, nutricionista, já se pegou fazendo recomendações nutricionais impecáveis, mas sem saber explicar como aquele prato sugerido poderia ser, de fato, preparado? É curioso como podemos saber de cor as funções metabólicas dos nutrientes, mas, na prática, tropeçamos quando o assunto é comida — comida com história, cheiro, textura e, principalmente, sabor.
Essa desconexão levanta uma questão importante: será que nos concentramos tanto na ciência por trás dos nutrientes que esquecemos do que realmente importa para quem está do outro lado da mesa? Para a maioria das pessoas, o que faz diferença é o prazer de comer, o compartilhamento à mesa, o impacto visual e emocional do que se serve no prato.
Se a Nutrição se propõe a promover saúde por meio da alimentação, faz sentido que o profissional compreenda profundamente a experiência de comer e todo o contexto cultural e sensorial que o envolve.
No entanto, essa desconexão não é um mero acaso – é fruto de uma formação focada quase exclusivamente no que acontece “da boca para dentro”, deixando em segundo plano a comida como cultura, experiência e história.
A verdade é que, antes de existir Nutrição como ciência, havia gastronomia. A arte de cozinhar, desenvolver sabores e criar conexões à mesa é tão antiga quanto a própria humanidade. Será que os nutricionistas não teriam muito a ganhar ao buscar na história e na prática gastronômica lições para enriquecer sua atuação?
Gastronomia e Humanidade
A história da gastronomia é, essencialmente, a história da humanidade. Desde o momento em que os primeiros hominídeos aprenderam a controlar o fogo, há cerca de 2 milhões de anos, a comida deixou de ser apenas uma necessidade biológica para se tornar parte da cultura. O ato de cozinhar trouxe mais do que calorias e nutrientes; ele uniu grupos, possibilitou interações sociais e deu origem a tradições que atravessam os séculos.
Na pré-história, as fogueiras eram um espaço de convivência e segurança. Com o passar do tempo, diferentes civilizações transformaram a alimentação em um elemento central de sua identidade.
Na Mesopotâmia, Egito e Roma, banquetes não eram apenas refeições, mas eventos políticos, religiosos e artísticos. Já os gregos da antiguidade viam a culinária como parte de sua filosofia de vida, e suas técnicas e práticas foram documentadas como uma arte.
A Idade Média trouxe outra perspectiva: a alimentação passou a refletir divisões sociais. Enquanto os nobres se deliciavam com pratos elaborados que simbolizavam luxo, o povo vivia à base de alimentos simples, mas igualmente ricos em história e significado.
Da Renascença ao Iluminismo, o avanço técnico e cultural foi acompanhado de transformações nas cozinhas, consolidando a gastronomia como um campo de conhecimento, muito antes de a Nutrição surgir como ciência.
Nutrição, uma ciência jovem
Enquanto a gastronomia evoluía ao longo de milênios, a Nutrição, como ciência, começou a se desenvolver apenas no século XIX e consolidou-se no século XX, com os avanços na bioquímica e a compreensão dos nutrientes.
No Brasil, a profissão ganhou força nos anos 1930, com iniciativas como as de Josué de Castro, que abordava a fome como um problema político e social, e políticas públicas voltadas à segurança alimentar, formando as bases para a Nutrição moderna e suas diversas áreas de atuação
Apesar disso, é importante lembrar que a humanidade viveu por milênios sem nutricionistas. As pessoas comiam, experimentavam e aprendiam sobre os alimentos através da prática, da cultura e da convivência.
E se, hipoteticamente, os nutricionistas desaparecessem, a sociedade seguiria comendo e encontrando formas de se nutrir. Essa reflexão não diminui a importância da Nutrição, mas reforça que seu papel hoje vai além da simples prescrição de dietas: trata-se de conectar saúde, ciência e cultura.
Inspirações práticas da gastronomia para a nutrição
Compreender a história da gastronomia é um passo importante, mas é na prática que esse conhecimento ganha sentido:
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Priorize o sabor
Uma alimentação saudável não precisa, nem deve, ser sem graça. A gastronomia ensina que o sabor é a chave para criar uma conexão emocional com a comida. Um prato saboroso é mais convidativo, aumentando a adesão a qualquer plano alimentar.
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Valorize a comensalidade
O ato de compartilhar refeições é tão antigo quanto a própria humanidade. Comer juntos, seja com a família ou amigos, vai além do ato físico de ingerir alimentos; é um momento de conexão, troca e fortalecimento de vínculos. Nutricionistas devem incentivar seus pacientes a resgatar esse hábito, ajudando-os a perceber a comida como parte de uma vivência coletiva e não apenas um “combustível” individual.
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Respeite a sazonalidade e a origem dos alimentos
A sazonalidade é uma lição direta da gastronomia. Ingredientes frescos e disponíveis em sua melhor época não apenas são mais saborosos, mas também mais nutritivos e acessíveis. Além disso, entender de onde vêm os alimentos — se são locais, importados, industrializados ou orgânicos — permite um comer mais consciente.
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Domine técnicas culinárias
Um nutricionista não precisa ser um chef, mas compreender as bases da culinária faz uma grande diferença. Técnicas simples, como assar, grelhar, cozinhar a vapor ou até preparar molhos caseiros, podem ser ferramentas poderosas para ensinar pacientes a transformar alimentos em refeições práticas e saborosas.
Saber sobre tempos de cozimento, cortes e armazenamento de alimentos também enriquece as orientações nutricionais, tornando-as mais aplicáveis no dia a dia.
Independente da área de atuação, todo nutricionista trabalha, no fim das contas, com pessoas que comem – e o ato de comer é um evento carregado de história, cultura e emoções. Incorporar ensinamentos da gastronomia na atuação e posicionamento profissional é uma forma do nutricionista respeitar a complexidade do ato de comer e conectar-se melhor com seus pacientes.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
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