A relação entre esporte, desempenho e saúde atravessa um caminho delicado, muitas vezes repleto de pressões que podem desencadear comportamentos prejudiciais. No cenário esportivo, a busca incessante por performance e aparência física idealizada frequentemente resulta em uma relação difícil com a alimentação e o corpo.
Esportistas enfrentam cobranças que não são apenas externas, vindas de treinadores, patrocinadores e público, mas também internas, alimentadas por padrões muitas vezes inalcançáveis. Essa pressão pode levar ao desenvolvimento de transtornos alimentares, que comprometem não só o rendimento esportivo, mas também a saúde geral e a qualidade de vida dos atletas.
Estudos apontam que a prevalência de transtornos alimentares é maior entre esportistas do que na população geral, especialmente em modalidades que valorizam o controle de peso ou uma aparência específica, como o atletismo, a ginástica e os esportes de luta.
Esses dados destacam a relevância do tema não apenas para profissionais de saúde mental, mas também para nutricionistas (seriamos todos nós profissionais de saúde mental?), que ocupam uma posição crucial na promoção de condutas saudáveis e na identificação precoce de comportamentos de risco. Assim, compreender o impacto das pressões esportivas sobre os transtornos alimentares não é apenas uma questão de curiosidade acadêmica, mas uma necessidade prática para a saúde integral dos atletas e para a promoção de uma cultura esportiva verdadeiramente saudável.
Quais são as modalidades de risco?
Entre os esportes com maior incidência de transtornos alimentares, destacam-se os classificados como estéticos, de categorias de peso e de resistência. Ginástica artística, balé, judô e atletismo são exemplos emblemáticos. Nessas modalidades, a aparência física ou o peso diretamente influenciam a performance ou a avaliação, o que torna os atletas mais vulneráveis a desenvolver comportamentos alimentares inadequados.
Por exemplo, esportes estéticos frequentemente associam a leveza à elegância e ao sucesso, enquanto os esportes de categorias de peso pressionam os atletas a alcançarem metas muitas vezes incompatíveis com a saúde a curto prazo. Essa pressão é reforçada por treinadores, colegas e até mesmo pelo público, criando um ambiente que perpetua padrões de comportamento de risco.
Os fatores psicológicos, sociais e culturais associados aos transtornos alimentares em atletas são amplamente documentados em trabalhos sobre o tema. A obsessão pela perfeição, comum em ambientes competitivos, pode amplificar sentimentos de inadequação e insatisfação corporal.
Além disso, a cultura esportiva muitas vezes exalta o sacrifício extremo como um valor positivo, reforçando comportamentos que priorizam o desempenho em detrimento da saúde. A influência de normas sociais que glorificam corpos magros e definidos é igualmente prejudicial, sendo ainda mais exacerbada pela mídia e pelas redes sociais. Essas plataformas frequentemente promovem imagens irreais de corpos atléticos, que os esportistas se sentem pressionados a imitar.
Esportes de elite possuem um impacto significativo na imagem corporal e nos comportamentos alimentares dos atletas. A exigência por resultados excepcionais cria um ambiente onde restrições alimentares e treinos intensos são frequentemente normalizados.
Essa busca pela “forma perfeita” muitas vezes mascara o desenvolvimento de transtornos alimentares, que são vistos como um subproduto aceitável do sucesso esportivo. Contudo, os impactos vão além da saúde mental e física. Transtornos alimentares comprometem o desempenho atlético, resultando em fadiga precoce, perda de massa muscular e maior suscetibilidade a lesões. Além disso, o tempo de recuperação de lesões tende a ser prolongado, agravando ainda mais a vulnerabilidade do atleta.
Há uma correlação direta entre transtornos alimentares e maior incidência de condições como depressão e ansiedade entre atletas. Estudos apontam que esses transtornos muitas vezes coexistem, criando um ciclo de autodepreciação e comportamento autodestrutivo. Essa realidade é agravada pelo estigma que ainda envolve os cuidados em saúde mental, especialmente em contextos esportivos, onde demonstrar fragilidade é frequentemente desencorajado.
Outro ponto relevante é a diferença na prevalência e nos tipos de transtornos alimentares entre atletas masculinos e femininos. Enquanto as mulheres apresentam maior prevalência de anorexia nervosa e bulimia, os homens tendem a desenvolver compulsões alimentares e comportamentos extremos de controle de peso, frequentemente impulsionados pelo desejo de ganhar massa muscular ou reduzir gordura corporal.
As categorias de peso em esportes de combate também desempenham um papel crítico nesse cenário. Atletas de modalidades como judô e boxe frequentemente recorrem a práticas extremas para atingir o peso necessário antes das competições, como desidratação severa e jejuns prolongados. Essas estratégias, além de prejudicarem o rendimento, têm implicações graves para a saúde a longo prazo.
Por outro lado, a vulnerabilidade a transtornos alimentares não se limita aos atletas profissionais. Embora menos estudados, os atletas amadores também enfrentam desafios significativos, especialmente aqueles que aspiram alcançar níveis competitivos mais altos. A influência das redes sociais e da mídia é outro aspecto que não pode ser ignorado. As plataformas digitais amplificam a glorificação de corpos “perfeitos”, muitas vezes promovendo dietas restritivas e rotinas de exercícios intensos como ideais de saúde.
Essa constante exposição pode agravar sentimentos de inadequação e incentivar comportamentos alimentares prejudiciais, particularmente entre jovens atletas que estão em fase de formação de identidade. Embora o esporte tenha o potencial de promover saúde e bem-estar, essas pressões externas frequentemente distorcem a relação dos atletas com a alimentação e o próprio corpo.
Prevenção e intervenção de transtornos alimentares no esporte
Intervir e prevenir transtornos alimentares no esporte requer a formação de equipes multidisciplinares, compostas por psiquiatras, psicólogos e nutricionistas. Esses profissionais desempenham papéis complementares e inegociáveis no tratamento, cada um trazendo sua expertise para abordar as dimensões psicológica, física e nutricional do problema. Essa abordagem integrada é fundamental para identificar e intervir precocemente, minimizando os danos à saúde e ao desempenho esportivo.
Estratégias de prevenção de transtornos alimentares no ambiente esportivo devem começar pela educação de treinadores, atletas e familiares. Palestras e workshops que desmistificam padrões corporais ideais e promovem a aceitação corporal têm mostrado eficácia. Além disso, iniciativas que enfatizam a importância da nutrição adequada para o desempenho esportivo, sem focar exclusivamente no peso, são essenciais.
A criação de protocolos claros por entidades esportivas, que orientem treinadores sobre como lidar com sinais de alerta e comportamentos de risco, também desempenha um papel crucial.
A discussão sobre saúde e desempenho no esporte tem evoluído gradualmente, refletindo uma maior conscientização sobre os impactos negativos dos transtornos alimentares. Apesar de avanços, a linha entre dedicação e excesso ainda é tênue. No mundo esportivo, comportamentos arriscados frequentemente são vistos como sinônimo de compromisso, e a busca pela excelência pode levar ao adoecimento físico e mental.
Essa dualidade também encontra eco na sociedade, onde indivíduos admiram e tentam reproduzir padrões extremos de atletas, acreditando erroneamente que isso representa saúde.
Essa visão distorcida influencia inclusive os próprios nutricionistas, que podem sentir pressão para alinhar suas práticas a ideais de saúde irrealistas, sem considerar os aspectos biopsicossocioculturais que permeiam o comportamento alimentar. Essa reflexão pode transformar não apenas a relação entre atletas e alimentação, mas também ampliar o impacto positivo que o nutricionista exerce na sociedade, promovendo uma compreensão mais ampla e realista do que significa ser saudável.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
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