A sustentabilidade no âmbito da alimentação humana desponta como um dos maiores desafios globais do século XXI, em um cenário onde a segurança alimentar precisa coexistir com a preservação ambiental. O sistema alimentar atual, apesar de proporcionar abundância e diversidade de alimentos para muitas regiões, é desigual e precisa de novas estratégias para conseguir se perpetuar para as próximas gerações.
Observamos um paradoxo cruel: enquanto centenas de milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar, milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas ao longo da cadeia de produção, distribuição e consumo. Nesse contexto, a inovação tecnológica e a ciência da Nutrição emergem como aliadas indispensáveis para transformar as práticas alimentares em direção a sistemas mais sustentáveis.
O avanço de tecnologias de conservação, como plasma frio, alta pressão hidrostática e embalagens inteligentes, revela um horizonte promissor para enfrentar essa dualidade. Essas inovações não apenas prolongam a vida útil dos alimentos, minimizando perdas, mas também preservam seus valores nutricionais e qualidades sensoriais.
Contudo, a implementação efetiva dessas tecnologias requer mais do que investimento em ciência e infraestrutura; exige uma abordagem integrada, que considere as realidades sociais, econômicas e culturais envolvidas. Nesse ponto, o papel do nutricionista assume centralidade, não apenas como agente de promoção da saúde, mas também como articulador de mudanças em sistemas alimentares complexos.
Os nutricionistas, com sua expertise em alimentação e saúde, estão estrategicamente posicionados para conectar as inovações tecnológicas ao dia a dia dos consumidores e à dinâmica das indústrias alimentícias – sua atuação deve ir além do consultório, estendendo-se à colaboração com políticas públicas, ao desenvolvimento de produtos e à educação nutricional em larga escala. É nessa confluência de ciência, inovação e prática profissional que se encontram as maiores oportunidades — e também as maiores responsabilidades — para moldar o futuro da alimentação.
Inovações tecnológicas na conservação de alimentos: Sustentabilidade e redução de desperdício
A ciência e a tecnologia têm desempenhado papéis fundamentais na transformação do setor alimentício, desenvolvendo soluções capazes de prolongar a vida útil dos alimentos, preservar suas qualidades sensoriais e nutricionais e minimizar o impacto ambiental. Abaixo, destacam-se algumas das inovações mais promissoras, acompanhadas de suas respectivas contribuições e desafios:
Plasma frio: Essa tecnologia emergente utiliza gases ionizados para inativar microrganismos em alimentos sem a necessidade de altas temperaturas. Isso não apenas preserva as propriedades nutricionais e sensoriais, como também reduz o consumo de energia em comparação com processos térmicos tradicionais.
Além disso, o plasma frio é altamente eficiente na desinfecção de superfícies, sendo aplicado com sucesso em frutas, vegetais e alimentos minimamente processados. Contudo, sua implementação em larga escala ainda depende de avanços em equipamentos acessíveis e adaptações às diferentes características dos produtos alimentícios.
Alta pressão hidrostática (APH): Considerada uma das tecnologias mais eficazes para a conservação de alimentos, a APH utiliza pressões extremas para eliminar patógenos e prolongar a vida útil sem comprometer a textura ou o sabor. Alimentos como sucos, carnes, frutos do mar e produtos lácteos já se beneficiam amplamente dessa inovação. Além de sua eficácia microbiológica, a APH apresenta uma pegada ambiental reduzida em comparação aos métodos térmicos convencionais, devido ao menor consumo energético. No entanto, seu custo elevado e a necessidade de equipamentos especializados ainda representam barreiras para pequenos produtores e mercados em desenvolvimento.
Embalagens inteligentes: Essas soluções avançadas incorporam sensores químicos ou bioquímicos que monitoram variáveis críticas, como temperatura, umidade e liberação de gases, permitindo a detecção de alterações que indicam deterioração dos alimentos. Além de prolongarem a vida útil e reduzirem o desperdício, essas embalagens promovem segurança alimentar ao evitar o consumo de produtos inadequados.
Um exemplo é o uso de sensores que mudam de cor para alertar o consumidor sobre mudanças na qualidade do produto. Quando integradas à Internet das Coisas, essas embalagens ganham ainda mais funcionalidade – A Internet das Coisas refere-se a uma rede de dispositivos conectados que comunicam informações em tempo real, permitindo a troca de dados sem intervenção humana direta.
No contexto das embalagens inteligentes, isso possibilita que sensores integrados transmitam dados continuamente para dispositivos móveis, sistemas de monitoramento ou softwares na cadeia de suprimentos. Assim, é possível acompanhar de forma remota e em tempo real as condições de armazenamento, transporte e exposição dos alimentos. Apesar de suas inúmeras vantagens, desafios como os altos custos iniciais e a falta de familiaridade dos consumidores com essas tecnologias ainda limitam sua implementação em larga escala.
Atmosferas modificadas (AM): Essa tecnologia consiste na alteração controlada dos níveis de oxigênio, dióxido de carbono e nitrogênio nas embalagens para retardar o crescimento microbiano e a oxidação. AM é amplamente utilizada em alimentos perecíveis, como carnes frescas, frutas e vegetais, prolongando sua vida útil em até 30 dias. Estudos mostram que, quando combinada com embalagens biodegradáveis, essa técnica apresenta uma solução ambientalmente sustentável, diminuindo as emissões de carbono associadas ao transporte e armazenamento.
Ultrassom e radiação UV: Ambos são métodos não térmicos que preservam nutrientes sensíveis ao calor enquanto eliminam microrganismos patogênicos. O ultrassom, por exemplo, é eficaz na remoção de contaminantes de frutas e vegetais, enquanto a radiação UV é amplamente usada na descontaminação de superfícies alimentícias e equipamentos. Essas tecnologias não apenas promovem segurança microbiológica, mas também reduzem o uso de produtos químicos desinfetantes, contribuindo para práticas mais sustentáveis.
Revestimentos comestíveis: Desenvolvidos a partir de compostos naturais como proteínas, polissacarídeos e lipídios, esses revestimentos são aplicados diretamente em frutas e vegetais para prolongar sua vida útil. Além de reduzir perdas durante o transporte e o armazenamento, os revestimentos comestíveis oferecem uma barreira adicional contra microrganismos e desidratação, sem gerar resíduos plásticos. A integração desses revestimentos com agentes antimicrobianos ou antioxidantes também amplia sua eficácia.
Essas tecnologias não apenas representam avanços significativos na conservação de alimentos, mas também refletem uma mudança de paradigma na forma como o setor alimentício aborda questões ambientais e sociais.
No entanto, a transformação do sistema alimentar exige mais do que avanços tecnológicos: demanda coragem para encarar a complexidade dos desafios sociais, econômicos e ambientais que os cercam. Neste cenário, o nutricionista precisa repensar seu papel.
Virar as costas para a indústria de alimentos ou reduzir sua atuação ao consultório não é apenas um erro, mas também uma renúncia ao impacto que poderia ter na sociedade como um todo. Sustentabilidade não se constrói com idealismos vazios ou soluções limitadas ao indivíduo, mas com ações integradas e consciência crítica sobre a interdependência de todos os atores do sistema alimentar. A pergunta que fica é: estamos, enquanto profissionais, prontos para assumir essa responsabilidade ou continuaremos presos ao conforto de uma atuação míope? O futuro não espera.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
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