A prevenção das doenças cardiovasculares (DCV) através de estratégias nutricionais é um tema amplamente explorado e discutido. Diversos estudos e recomendações apresentam orientações específicas sobre quais padrões alimentares seguir para reduzir os riscos cardiovasculares.
No entanto, é essencial que essas orientações sejam analisadas de forma crítica, considerando não apenas os resultados dos trabalhos científicos, mas também suas limitações – colocando todo este conhecimento dentro da realidade prática do nutricionista e da vida dos pacientes (no mundo real).
Muitas vezes, as recomendações são apresentadas de maneira simplificada e inespecíficas, desconsiderando as particularidades culturais, sociais e psicológicas de cada indivíduo. Para o nutricionista, é fundamental não apenas aplicar esses conhecimentos, mas também adaptá-los ao contexto de cada paciente, com um olhar prático e humanizado.
Padrões Alimentares e Riscos Cardiovasculares: Um Olhar Crítico
As recomendações atuais geralmente se concentram em padrões alimentares que favorecem a ingestão de vegetais, frutas, nozes, legumes, cereais integrais e peixes. A redução do consumo de sódio é frequentemente destacada, assim como a substituição de gorduras saturadas por monoinsaturadas e poli-insaturadas.
Também é comum a orientação de evitar alimentos ultraprocessados e preferir alimentos integrais e minimamente processados. Além disso, há uma ênfase na promoção de políticas públicas que incentivem escolhas alimentares saudáveis e a importância de adaptar intervenções a preferências individuais e comorbidades dos pacientes. Nada de novo, certo?
Ao observar essas recomendações, é importante lembrar que o simples foco em alimentos específicos ou nutrientes isolados pode levar a conclusões equivocadas. Por exemplo, a redução do sódio é frequentemente recomendada, mas devemos analisar com mais profundidade o contexto em que esse consumo acontece. Países como o Japão, onde o molho de soja faz parte da dieta diária, ou a Itália, onde embutidos são consumidos regularmente, apresentam altas expectativas de longevidade e baixos índices de doenças cardiovasculares. Isso nos leva a refletir que não é o sal, isoladamente, o responsável pelos problemas de saúde, mas sim o padrão alimentar como um todo.
A forma como distribuímos o consumo de sódio ao longo do dia e a qualidade dos alimentos que acompanham essa ingestão podem fazer a diferença. O excesso de sal em alimentos ultraprocessados, associados a padrões alimentares pobres em nutrientes, é uma realidade muito diferente de uma dieta rica em alimentos frescos e integrais, como observamos em culturas onde o consumo de sódio é alto, mas a longevidade também é.
O Paradoxo das Gorduras na Alimentação
O mesmo ocorre com o papel das gorduras na alimentação. A visão simplista de que toda gordura é prejudicial à saúde cardiovascular não condiz com a realidade. O paradoxo francês, onde a população tem uma alimentação rica em gorduras saturadas, mas apresenta baixos índices de doenças cardiovasculares, é um exemplo de como o contexto cultural, o padrão alimentar e o estilo de vida podem influenciar mais do que o consumo de um único nutriente. Em vez de se concentrar apenas na gordura como algo prejudicial, é mais sensato ajudar o paciente a entender como equilibrá-la com outros alimentos, criando um padrão alimentar que promova saúde sem restrições.
Promovendo a Alimentação Caseira e o Acesso a Alimentos Saudáveis
Para que o nutricionista vá além das orientações simplistas, como “retire o saleiro da mesa” ou “use azeite ao invés de manteiga”, é fundamental que ele se aproxime da realidade prática do paciente, o que inclui falar sobre o ato de cozinhar e explorar os recursos disponíveis no ambiente alimentar em que a pessoa vive.
Incentivar o preparo de alimentos em casa pode ser um passo essencial para promover uma alimentação saudável e equilibrada, e, nesse sentido, o nutricionista deve discutir receitas práticas e acessíveis, além de sugerir livros, canais e plataformas digitais que possam inspirar e motivar o paciente a cozinhar mais. Igualmente importante é mapear os locais onde o paciente adquire seus alimentos, como feiras, supermercados e restaurantes que ele frequenta, orientando sobre as melhores escolhas dentro dessas opções. Ao fazer isso, o nutricionista ajuda o paciente a desenvolver um senso crítico em relação aos alimentos disponíveis, facilitando a criação de um ambiente alimentar favorável às suas metas.
Além disso, é importante reconhecer que a alimentação é apenas uma parte dos muitos fatores que influenciam o desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Aspectos como a genética, o ambiente social, a exposição a poluentes e o estresse também têm um impacto significativo. Olhar exclusivamente para a alimentação como solução para a prevenção de DCV pode desviar a atenção de outros fatores importantes.
O nutricionista deve ter em mente que, muitas vezes, o ambiente em que o paciente vive, sua rotina de trabalho, suas condições econômicas e até o acesso a alimentos saudáveis são determinantes cruciais para sua saúde, e que mudar apenas a alimentação pode não ser suficiente para melhorar sua qualidade de vida.
O Papel do Nutricionista: Adaptação e Realidade Prática dos Pacientes
Ao trabalhar no contato direto com pacientes, é essencial que o nutricionista não se limite a fornecer informações e orientações técnicas, mas sim a entender e trabalhar junto com ele suas crenças e conhecimentos de forma prática. O conhecimento sobre o que é saudável ou não muitas vezes não é o suficiente para gerar mudanças duradouras de comportamento.
O nutricionista precisa atuar como facilitador, ajudando o paciente a aplicar o conhecimento de forma que faça sentido em sua vida, respeitando suas preferências alimentares, limitações e contexto sociocultural. Isso significa criar estratégias viáveis e sustentáveis que vão além das recomendações gerais e se adequam à realidade individual.
A prevenção das doenças cardiovasculares envolve muito mais do que seguir à risca as recomendações nutricionais. É preciso olhar para os padrões alimentares com uma visão crítica, considerando o contexto de cada indivíduo, suas crenças e desafios diários. O papel do nutricionista vai além de planos alimentares: ele deve atuar de forma colaborativa com o paciente, construindo juntos uma relação saudável com a alimentação e promovendo mudanças práticas e aplicáveis ao longo do tempo.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
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