Os alimentos ultraprocessados têm sido objeto de intensa discussão nos últimos 10 anos, suscitando debates sobre sua definição, impacto na saúde e o papel dos nutricionistas na orientação sobre alimentação.
Mas, muito mais do que dizer se este tipo de alimento “é bom” ou “é ruim”, faz-se necessária uma exploração sobre a polêmica origem do termo “alimentos ultraprocessados“, as diferentes formas de classificar os alimentos e a importância dos profissionais de nutrição se posicionarem de forma clara e equilibrada em suas redes sociais e atendimentos, a fim de oferecer orientações que promovam uma alimentação saudável, mas também realista, levando em consideração a complexidade da relação das pessoas com a comida.
Buscas nas bases de dados científicas indicam que o termo “alimento ultraprocessado” foi utilizado pela primeira vez em 2009 pelo Professor Carlos Augusto Monteiro, médico que traçou toda a sua carreira acadêmica na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
No texto em questão, Monteiro apresenta uma reclassificação dos alimentos, refutando categorias e composição nutricional, para propor uma divisão baseada em nível de processamento dos alimentos:
- Minimamente processados;
- Substâncias extraídas dos alimentos;
- Alimentos ultraprocessados.
Monteiro ainda faz interessantes conjecturas, alegando que que dietas saudáveis são compostas, de forma geral, por um equilíbrio entre os grupos (1) e (2), mas nunca apenas pelo grupo (2) – o que justifica o seu desaconselhamento do consumo do grupo (3), uma vez que este também apresenta, teoricamente, uma baixa variedade de nutrientes.
Logo após a publicação, dada a notoriedade do pesquisador, críticas foram direcionadas ao periódico acadêmico, por meio de cartas de resposta, questionando a real praticidade de tal divisão e os problemas de operacionalizar isto tanto na pesquisa quanto no cotidiano das pessoas.
Problemas que, de fato, ainda persistem nos dias de hoje – particularmente no cotidiano das pessoas – mas que foram sufocados por fortes evidências que associaram o consumo desta nova “categoria” de alimentos com diversos efeitos adversos a saúde: hipertensão; doenças coronarianas e infarto; diabetes tipo 2; obesidade; câncer; depressão; e demência.
Com resultados tão proeminentes, era inevitável que o termo “ultraprocessado” não ganhasse popularidade, tanto para retroalimentar a produção científica quanto para cair “no gosto” da mídia.
Pouco tempo depois, esta nova classificação foi aprimorada e chamada justamente de NOVA (veja o quadro) – esta forma de enxergar os alimentos, não só pelo nível de processamento mas também pelo propósito do mesmo, foi a grande inspiração para o Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, que recomenda que os alimentos ultraprocessados sejam evitados (e não banidos da alimentação).
Alimentos in natura ou minimamente processados | Alimentos não processados (in natura) são partes comestíveis de plantas (sementes, frutas, folhas, caules, raízes) ou de animais (carne, miúdos, ovos, leite), bem como fungos, algas e água, após separação da natureza. Alimentos minimamente processados são alimentos naturais alterados por processos que incluem remoção de partes não comestíveis ou indesejadas, secagem, trituração, moagem, fracionamento, filtragem, torrefação, fervura, fermentação não alcoólica, pasteurização, refrigeração, resfriamento, congelamento, embalagem em recipientes e acondicionamento a vácuo. Esses processos visam preservar alimentos naturais, torná-los adequados para armazenamento ou torná-los seguros ou agradáveis para o consumo. |
Ingredientes culinários processados | Ingredientes culinários processados, como óleos, manteiga, açúcar e sal, são substâncias derivadas de alimentos do primeiro grupo ou da natureza por meio de processos que incluem prensagem, refinamento, moagem, trituração e secagem. O propósito desses processos é criar produtos duráveis adequados para uso em cozinhas domésticas e de restaurantes, para preparar, temperar e cozinhar alimentos do primeiro grupo, criando pratos e refeições artesanais variados e agradáveis, como ensopados, sopas, saladas, pães, conservas, bebidas e sobremesas. |
Alimentos processados | Alimentos processados, como vegetais enlatados, peixes enlatados, frutas em calda, queijos e pães frescos, são essencialmente feitos adicionando sal, óleo, açúcar ou outras substâncias dos dois primeiros grupos. Os processos incluem vários métodos de preservação ou cozimento e, no caso de pães e queijos, fermentação não alcoólica. A maioria dos alimentos processados possui dois ou três ingredientes e são reconhecíveis como versões modificadas de alimentos in natura. |
Alimentos ultraprocessados | Alimentos ultraprocessados, como refrigerantes, lanches embalados doces ou salgados, produtos de carne reconstituída e pratos congelados pré-preparados, não são considerados alimentos modificados, mas formulações feitas principalmente ou inteiramente a partir de substâncias derivadas de alimentos e aditivos, com poucos alimentos in natura intactos. Os ingredientes dessas formulações geralmente incluem aqueles também usados em alimentos processados, como açúcares, óleos, gorduras ou sa; alguns deles são extraídos diretamente de alimentos, como caseína, lactose, soro e glúten. Os aditivos em alimentos ultraprocessados incluem alguns usados também em alimentos processados, como conservantes, antioxidantes e estabilizadores. Classes de aditivos encontrados apenas em produtos ultraprocessados incluem aqueles usados para imitar ou realçar as qualidades sensoriais dos alimentos ou disfarçar aspectos desagradáveis do produto final. |
Mas, ainda que as origens da classificação NOVA dos alimentos refutem uma divisão dos alimentos por sua composição nutricional, ela nada mais é que uma forma de reagrupar diferentes padrões de composição nutricional, uma vez que alimentos ultraprocessados são tipicamente produtos de alta densidade energética, ricos em açúcar, gorduras não saudáveis e sal, e pobres em fibras alimentares, proteínas, vitaminas e minerais.
No âmbito populacional, este novo agrupamento de alimentos é muito eficaz para identificar padrões alimentares e os rumos dos sistemas alimentares que se estabelecem em diferentes regiões do mundo.
É inegável que tal proposta tenha em suas origens uma visão ampla e a longo prazo da alimentação da população – o que é fundamental para o desenvolvimento de políticas de saúde pública.
Entretanto, tal como previram os primeiros críticos da proposta, a sua implementação no cotidiano das pessoas é pouquíssimo prática, gera confusão e abre espaço para discursos dicotômicos e rasos sobre a alimentação – inclusive entre nutricionistas e profissionais da saúde e, por essa razão, alguns lembretes são válidos:
- A indústria de alimentos não é uma vilã. Inclusive, esta é uma consideração feita pelos próprios criadores da classificação NOVA dos alimentos na publicação sobre ela. A produção, preservação, fabricação, distribuição e venda de alimentos criam suprimentos de alimentos seguros, confiáveis e convenientes para as pessoas no mundo inteiro, além de compor um sistema que remunera e dá dignidade a centenas de milhares de famílias.
- Alimentos ultraprocessados não são proibidos. Essa talvez seja a ideia mais difícil de digerir, pois se eles fazem tão mal, por que eles deveriam ser “permitidos” pelos nutricionistas? Aqui vale dizer que o papel do nutricionista não é permitir ou proibir alimentos, e sim entender o contexto de vida e alimentação dos indivíduos para, junto com ele, encontrar os melhores caminhos para uma alimentação saudável – que pode sim conter alimentos ultraprocessados. Este tipo de alimento já faz parte da vida de todas as pessoas e por mais que, no âmbito populacional, medidas que visem a redução do seu consumo precisem ser tomadas, no âmbito pessoal a análise precisa ser menos simplista e considerar como aquele alimento está sendo consumido e, em um balanço, quanto ele está contribuindo com energia e nutrientes para aquela pessoa específica.
- Existem ultraprocessados bons e ruins. Não existem alimentos bons ou ruins. Não existem alimentos melhores ou piores do que os outros. Existem alimentos diferentes: diferentes em origem, diferentes em composição nutricional, diferentes em contexto e frequência de consumo. Da mesma forma que uma pessoa que escolher se alimentar apenas de bolacha recheada para o resto da vida provavelmente terá problemas, uma pessoa que escolher comer apenas cenoura crua para o resto da vida também terá problemas – afinal, nem a bolacha recheada, nem a cenoura são capazes de suprir as necessidades de um indivíduo a longo prazo.
Para todos os nutricionistas que trabalham com pesquisas de consumo alimentar ou que, de alguma forma, estão envolvidos com políticas públicas e atendimento de populações o conceito de alimentos ultraprocessados é fundamental e deve ser considerado no cotidiano.
Para aqueles que trabalham com o público final e com comunicação, também – mas com uma perspectiva que tenha em seu cerne uma visão ampla da alimentação e relação com a comida dos indivíduos e que não reforce ideias simplistas e confusas na cabeça das pessoas.
Referências Bibliográficas
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- Darmon, N. (2009). Letters to the Editor. Public Health Nutrition, 12(10), 1967-1968. doi:10.1017/S1368980009991212
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