A obesidade tem sido amplamente discutida na ciência e na prática clínica, mas ainda carrega uma série de desafios quando se trata de diagnóstico e manejo. Apesar de afetar uma parcela significativa da população mundial, sua definição sempre esteve atrelada a parâmetros limitados, como o IMC (índice de massa corporal), e frequentemente reduzida a uma “doença”, acompanhada do estigma que a única responsabilidade é do indivíduo.
No entanto, essa visão não reflete a complexidade da obesidade, nem atende às necessidades dos indivíduos que vivem com ela. Com isso em mente, o relevante periódico The Lancet Diabetes & Endocrinology reuniu uma comissão internacional de especialistas para reavaliar o conceito e os critérios diagnósticos da obesidade. [1]
Publicado em janeiro de 2025, o relatório da comissão foi liderado pelo professor Francesco Rubino, do King’s College London, e contou com a colaboração de 56 especialistas de diversas áreas, incluindo endocrinologia, nutrição, saúde pública e, inclusive, representação de pacientes.
O objetivo central foi propor um modelo que diferencie quando a obesidade representa um risco aumentado para a saúde e quando ela se configura como uma condição clínica por si só. O resultado dessa iniciativa foi a introdução de duas novas categorias: obesidade clínica e obesidade pré-clínica.
Essa redefinição abre espaço para abordagens mais individualizadas e baseadas em evidências, permitindo que profissionais de saúde adotem estratégias de cuidado mais precisas e eficazes. Essa mudança no entendimento da obesidade tem implicações diretas para a prática dos nutricionistas e no planejamento de intervenções que respeitem a realidade de cada paciente.
Por que o IMC não diz nada sobre seu paciente?
O Índice de Massa Corporal (IMC) tem sido amplamente utilizado como ferramenta para classificar a obesidade, mas sua aplicação clínica tem limitações significativas. Embora seja um indicador simples e de fácil aplicação, o IMC não fornece informações sobre a composição corporal do indivíduo, como a distribuição de gordura ou a funcionalidade do tecido adiposo.
Pacientes com o mesmo IMC podem ter perfis metabólicos completamente distintos: enquanto alguns apresentam resistência à insulina, inflamação crônica e risco elevado para doenças cardiometabólicas, outros mantêm um metabolismo saudável, sem evidências de comprometimento funcional. Estudos mostram que até 30% das pessoas classificadas com obesidade pelo IMC não apresentam as complicações metabólicas frequentemente associadas à condição, enquanto indivíduos com IMC dentro da faixa considerada “normal” podem ter alto percentual de gordura corporal e disfunção metabólica [2-3].
A inadequação do IMC como único critério para avaliar a obesidade se torna ainda mais evidente quando analisamos sua relação com a adiposidade visceral, um fator diretamente associado ao risco de doenças.
A gordura depositada na região abdominal, especialmente em torno dos órgãos internos, tem um papel crucial no desenvolvimento de complicações como resistência à insulina, esteatose hepática e doenças cardiovasculares. No entanto, o IMC não distingue entre diferentes padrões de distribuição de gordura e pode subestimar o risco em pacientes com adiposidade central, mas sem um peso corporal elevado. Estudos demonstram que medidas como a circunferência da cintura ou a relação cintura-altura possuem maior precisão na predição de riscos metabólicos do que o IMC isolado [4-6].
Além disso, o uso indiscriminado do IMC para classificar indivíduos pode contribuir para diagnósticos equivocados e acesso desigual ao cuidado. Pessoas com IMC elevado podem ser encaminhadas para tratamentos sem uma avaliação mais aprofundada de sua saúde metabólica, enquanto pacientes que realmente necessitam de intervenção podem não ser identificados devido à sua classificação dentro de uma faixa considerada normal.
Essa simplificação excessiva perpetua abordagens inadequadas no manejo da obesidade, reforçando a ideia de que a perda de peso deve ser o objetivo principal do tratamento, em vez de focar na melhora da funcionalidade do organismo.
A nova proposta de definição de obesidade clínica leva em consideração essas limitações e propõe um modelo que avalia diretamente os impactos da adiposidade na saúde do paciente, garantindo que as decisões clínicas sejam baseadas em critérios mais precisos e individualizados [2, 7-8].
Obesidade clínica e obesidade pré-clínica
A nova definição de obesidade propõe uma distinção fundamental entre obesidade clínica e obesidade pré-clínica, reconhecendo que o excesso de adiposidade não impacta a saúde de todas as pessoas da mesma forma.
Até agora, os critérios diagnósticos baseavam-se quase exclusivamente no IMC, ignorando aspectos essenciais, como a funcionalidade dos órgãos e os efeitos sistêmicos da obesidade. Com essa nova abordagem, a obesidade não é vista apenas como um fator de risco, mas pode ser considerada uma condição clínica quando há evidências de disfunção orgânica diretamente causadas pelo excesso de gordura [2].
Essa diferenciação permite um direcionamento mais preciso para o cuidado de cada indivíduo, garantindo que aqueles que realmente necessitam de tratamento tenham acesso a intervenções adequadas, enquanto outros possam ser acompanhados com estratégias preventivas.
A obesidade pré-clínica caracteriza-se pela presença de excesso de adiposidade sem sinais evidentes de disfunção orgânica ou comprometimento das atividades diárias. Embora essas pessoas tenham um risco aumentado de desenvolver doenças relacionadas à obesidade no futuro, elas não apresentam, no momento, sintomas ou alterações significativas na funcionalidade dos órgãos.
Já a obesidade clínica, por outro lado, é definida pela presença de sinais e sintomas que indicam um impacto direto da obesidade na saúde, como dificuldades respiratórias, alterações metabólicas, restrição de mobilidade ou complicações cardiovasculares. Essa diferenciação reflete uma mudança importante na forma como a obesidade deve ser diagnosticada e tratada, com base em critérios clínicos mais abrangentes e individualizados (Figura 1).
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Figura 1. Obesidade Clínica e Pré-Clínica. Adaptado de Rubino et al., 2025 [1]
Para estabelecer o diagnóstico, a avaliação da obesidade clínica envolve a combinação de medidas antropométricas (como IMC e circunferência da cintura) com exames clínicos e laboratoriais que identifiquem possíveis alterações funcionais.
Em casos de obesidade pré-clínica, o foco deve ser o monitoramento e a adoção de estratégias para reduzir o risco de progressão para a obesidade clínica, como mudanças no estilo de vida e acompanhamento regular. Essa abordagem personalizada contribui para uma melhor alocação dos recursos de saúde e reduz o impacto do estigma associado ao diagnóstico de obesidade, ao evitar tratamentos desnecessários para pessoas que não apresentam complicações relacionadas ao excesso de peso.
O que muda para o nutricionista?
A redefinição da obesidade proposta em 2025 traz implicações diretas para a prática clínica do nutricionista, especialmente no que diz respeito ao aconselhamento nutricional e às estratégias de intervenção centradas no paciente. O foco deixa de ser exclusivamente a perda de peso e passa a ser a melhora da saúde e da qualidade de vida, independentemente do IMC. Nesse novo contexto, a abordagem nutricional deve priorizar a relação do paciente com a alimentação, promovendo mudanças de comportamento sustentáveis e realistas, em vez de impor metas rígidas de peso [1, 9].
A entrevista motivacional, técnica já amplamente utilizada em áreas como a psicologia, surge como uma ferramenta essencial para o nutricionista nesse novo cenário.
Essa abordagem, que se baseia na escuta ativa, na empatia e na construção de autonomia do paciente, tem mostrado eficácia na promoção de mudanças de comportamento alimentar duradouras. Em vez de prescrever dieta, o profissional auxilia o paciente a identificar suas próprias motivações para a mudança, ajudando-o a encontrar estratégias que façam sentido dentro do seu contexto de vida [1-9].
Além disso, a redefinição da obesidade pode ter um impacto significativo na redução do estigma que ainda envolve pacientes com obesidade. A própria publicação do The Lancet Diabetes & Endocrinology destaca a necessidade de transformar a forma como a obesidade é vista e tratada, promovendo um cuidado mais individualizado e baseado em evidências [1].
No entanto, essa mudança não é uma novidade para a nutrição. Há 10 anos, a Nutrição Comportamental já trazia conceitos como aconselhamento nutricional e entrevista motivacional como ferramentas fundamentais para o atendimento, além de apontar as limitações do IMC como única medida de avaliação [9].
O reconhecimento mais amplo dessas práticas reforça a importância de um olhar mais humanizado e menos reducionista sobre o cuidado nutricional, algo que os nutricionistas que seguem essa abordagem já aplicam há anos.
A forma como definimos obesidade influencia não apenas diagnósticos e tratamentos, mas também políticas públicas, percepções sociais e a própria relação entre profissionais de saúde e pacientes.
Essa nova proposta não é apenas técnica; ela busca corrigir distorções históricas e alinhar a prática clínica às evidências mais atuais. No entanto, nenhuma mudança estrutural ocorre sem resistência. Se, por um lado, esse novo modelo pode reduzir o estigma e melhorar o acesso ao cuidado, por outro, ainda enfrentamos um cenário em que a obesidade é frequentemente reduzida a números e julgamentos simplistas. A ciência avançou, mas será nós, nutricionistas, estamos prontos para acompanhar essa mudança?
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
Referências Bibliográficas
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