É inegável que a obesidade seja uma das grandes questões de saúde pública da atualidade. As últimas décadas foram marcadas por um aumento expressivo da condição no mundo inteiro – no Brasil, entre 1975 e 2019, a prevalência de obesidade saltou de 2% para 21% em homens e de 6% para 29% em mulheres.
As estratégias de enfrentamento da, recém classificada, doença têm falhado de forma expressiva a longo prazo e a nível populacional – e mesmo com o aumento de pesquisas e de profissionais especializados, as perspectivas para os pr��ximos anos não são de melhora. Frente a este, faz-se necessário que profissionais da saúde, especialmente médicos e nutricionistas, revejam a sua forma de atuação neste âmbito, não só fugindo dos estereótipos já cravados no senso comum, como também ampliando sua visão sobre o tema.
Doença ou fator de risco?
Ainda que tenha sido classificada como doença pela Associação Médica Americana em 2013, persiste no meio acadêmico uma profunda discussão (ainda sem resolução) se obesidade realmente deveria ser considerada como tal. Não se trata apenas de um detalhe de nomenclatura, mas sim de uma ausência de critérios universais para um diagnóstico, bem como de sintomas bem descritos.
Segundo o CID-11, a obesidade é “uma doença crônica complexa definida pela adiposidade excessiva que pode prejudicar a saúde. É na maioria dos casos uma doença multifatorial devido a ambientes obesogênicos, fatores psicossociais e variantes genéticas. O índice de massa corporal (IMC) é um marcador substituto da adiposidade calculado como peso (kg)/altura² (m²). (…)”.
Sobre esta definição é possível fazer algumas observações que nos fazem entender a resistência de muitos profissionais em classificar a obesidade como doença:
- “Adiposidade excessiva que pode prejudicar a saúde” deixa implícito que nem toda adiposidade excessiva necessariamente prejudicará a saúde. De fato, o local do acúmulo de gordura e o tipo de tecido adiposo são extremamente relevantes em uma avaliação de consequências adversas (inflamação, resistência à insulina, desregulação do apetite e etc). Já está claro que o tecido adiposo visceral é o principal responsável pela produção de adipocinas (marcadores pró-inflamatórios e percursores das consequências adversas), enquanto o acúmulo de gordura subcutânea tem uma capacidade muito menor de causar dano.
- Assim, no âmbito de uma avaliação individual, é um erro dizer que o IMC é um substituto da adiposidade, uma vez que não avalia a composição corporal, e muito menos o tipo de tecido adiposo. Além dos óbvios erros do IMC com atletas de alta performance e fisiculturistas (que podem ser classificados como obesos), o seu uso isolado não é um reflexo das condições de saúde, seja em pessoas com obesidade ou não.
- Isso acontece porque não regularidade na manifestação de sintomas da obesidade. Em outras palavras, nem toda pessoa com obesidade classificada pelo IMC terá doenças cardiovasculares e diabetes, e nem todas as pessoas com doenças cardiovasculares e diabetes terão obesidade.
- Soma-se a isto questões relacionadas ao estigma com o peso, seja na sociedade ou entre profissionais de saúde – já que a classificação como doença fomenta discursos discriminatórios baseados exclusivamente no peso, ignorando as questões multifatoriais da doença, desde o ambiente até a predisposição genética.
Além destas questões, permeia no senso comum a ideia de que toda doença tem uma cura e mesmo condições em que já está bem estabelecido que se trata de uma condição crônica (como diabetes, por exemplo), não é difícil encontrar soluções de cura milagrosa.
Com a obesidade não é diferente (veja as recentes canetas emagrecedoras), mas é particularmente mais complicado – uma vez que mesmo com a redução do peso é possível que o tipo de tecido adiposo prejudicial à saúde ainda se faça presente, e ainda traga problemas. Entenda mais aqui:
O que fazer, na prática?
Enquanto acadêmicos debatem e buscam mais evidências sobre o tema, milhares de indivíduos imersos em uma confusão de informações continuarão a buscar ajuda profissional e precisarão de um cuidado ampliado, ao invés de estratégias simples de perda de peso (que não garantem a redução da adiposidade visceral, sustentam o estigma com o peso e ainda se associam a comportamentos de riscos).
Neste contexto, algumas ações são fundamentais:
- Acolher e esclarecer angústias relacionadas a saúde: Vivemos em uma sociedade que associa, equivocadamente, a magreza à saúde. Antes de se posicionar e conversar com o paciente sobre o tema lembre que alguns estudos já mostraram que a obesidade grau 1 não está associada a mortalidade (veja aqui), o risco de mortalidade entre eutróficos e pessoas com obesidade é o mesmo na presença de comportamentos saudáveis (veja aqui), e em idosos o sobrepeso é um fator de proteção (veja aqui).
- Usar outras estratégias de avaliação e acompanhamento: Não limite o acompanhamento nutricional ao monitoramento do peso – uma vez que este não representa necessariamente uma melhora de saúde. Exames bioquímicos e de imagem podem ajudar a dar um panorama melhor (ou mesmo a circunferência da cintura), mas o melhor acompanhamento da evolução do paciente é a capacidade dele de manter comportamentos saudáveis.
- Focar em comportamentos saudáveis: Trabalhar com plano alimentar e metas de mudança de comportamento individualizado trarão os melhores resultados a longo para o paciente – mesmo entre aqueles interessados na redução de peso por questões estéticas. É muito melhor, por exemplo, um paciente passar a comer mais hortaliças nas refeições durante 3 meses, do que se submeter a uma perda de peso (e não de adiposidade) no mesmo período.
- A resolução da pandemia de obesidade não está nas mãos dos médicos e nutricionistas, trata-se de um problema de saúde pública que não diz respeito somente a ingestão excessiva de calorias – contextos de vida definem a forma como o ser humano se adapta, e os números crescentes de obesidade são uma resposta a isto.
- Muito ainda precisa ser feito em relação a acesso a informações sobre saúde, acesso a alimentos e infraestrutura urbana para uma vida mais ativa – mas contemporaneamente, podemos ajudar os indivíduos em seus contextos a encontrar as melhores estratégias para uma vida mais saudável – que não será necessariamente mais magra.
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