A mentalidade de dieta vai além de um conjunto de regras sobre o que comer. Para muitas pessoas, a restrição alimentar se torna parte da identidade, moldando a forma como se enxergam e como interagem com a comida. O que começa como uma estratégia para controlar o peso pode se transformar em um padrão rígido, onde o valor pessoal passa a depender do cumprimento de regras alimentares.
Esse processo não ocorre apenas no plano consciente. A maneira como a restrição é vivenciada influencia o desejo por comida, as emoções e até a forma como o cérebro toma decisões alimentares.
Entender esses mecanismos é essencial para perceber quando a dieta passa a dominar pensamentos e comportamentos.
Motivações para restringir a alimentação
A restrição alimentar costuma ser vista como uma estratégia para atingir objetivos específicos, como emagrecimento ou melhora na saúde. No entanto, um estudo recente revelou que restringir alimentos vai além de uma simples decisão momentânea – para muitos, torna-se parte da identidade e da forma como se relacionam com a comida [1].
Ao entrevistar pessoas que adotaram algum tipo de restrição, os pesquisadores identificaram diferentes perfis. Algumas delas enxergavam a alimentação controlada como um reflexo de quem são, integrando restrições em um estilo de vida planejado e consistente. Para outras, a restrição era um dilema, oscilando entre a tentativa de manter o controle e o desejo de aproveitar a comida sem culpa. Houve também aqueles que só restringiam diante de uma necessidade pontual, como um problema de saúde ou um evento importante, sem incorporar essa prática de forma duradoura. Por fim, um grupo sequer percebia que restringia alimentos, apenas seguia padrões repetitivos sem refletir sobre suas escolhas.
Esses resultados mostram que a restrição não acontece de forma isolada. Ela pode ser um mecanismo consciente, um hábito inconsciente ou uma resposta a circunstâncias externas, mas sempre carrega significados que vão além do ato de evitar um alimento.
Investigar esses padrões e como eles se integram à identidade de cada pessoa é essencial para entender por que algumas restrições se mantêm e outras fracassam – e quais são seus impactos na relação com a comida ao longo do tempo.
Influências da restrição no comer
Se restringir a alimentação fosse apenas uma questão de força de vontade, bastaria decidir comer menos e o problema estaria resolvido. Mas, como mostram diversos estudos, a realidade é bem diferente. Restringir a comida altera a forma como pensamos sobre ela e, muitas vezes, afeta até o quanto queremos comer.
Um experimento recente mostrou que as emoções influenciam de maneira distinta aqueles que tentam restringir a alimentação e aqueles que não seguem nenhuma restrição alimentar [2].
O estudo acompanhou pessoas que praticam dieta e pessoas que não restringem sua alimentação. Durante o experimento, os participantes foram expostos a imagens que despertavam emoções positivas ou negativas, como rostos felizes ou tristes. Em seguida, viam imagens de comida e precisavam avaliar o quanto sentiam vontade de comer.
O resultado? As pessoas que não praticam restrição alimentar mantiveram uma relação estável com a comida – seu desejo de comer permaneceu praticamente inalterado, independentemente de estarem felizes ou tristes. Para elas, comer pareceu um comportamento mais natural e regulado, sem grandes oscilações emocionais.
Já entre os praticantes de dieta que não conseguem manter a restrição, a história foi diferente.
Quando estavam felizes, seu desejo de comer aumentava significativamente. As emoções positivas pareciam desarmar qualquer tentativa de controle, levando-os a querer comer mais do que planejavam. Isso sugere que o simples fato de tentar evitar certos alimentos pode tornar a alimentação mais vulnerável a impulsos emocionais – um efeito que não foi observado entre aqueles que não fazem restrição.
Esses achados trazem uma reflexão importante: será que a dificuldade está na falta de controle ou na própria rigidez da restrição? Quem tenta seguir regras alimentares muito severas pode acabar mais suscetível a momentos de descontrole.
Em contrapartida, quem não se impõe essas limitações parece desenvolver uma relação mais previsível com a comida. Talvez, ao invés de apostar em proibições, o caminho para um emagrecimento sustentável esteja em aprender a comer de forma mais flexível e menos baseada na luta contra o próprio desejo.
Aspectos neurológicos da restrição
Se restringir alimentos já altera a forma como pensamos sobre comida, será que isso também muda como o cérebro funciona? Para responder a essa pergunta, um estudo investigou o que acontece no cérebro de pessoas que restringem a alimentação – desde aquelas que fazem dieta de forma mais leve até aquelas que vivem a restrição como um sofrimento intenso ou que apresentam anorexia nervosa. Os pesquisadores queriam entender se essas diferentes formas de restrição ativam padrões cerebrais distintos e se, em alguns casos, a escolha alimentar se torna um processo automático, difícil de modificar [3].
A pesquisa reuniu quatro grupos de mulheres com diferentes relações com a restrição alimentar:
Grupo A: mulheres que comem sem preocupações rígidas, sem fazer dieta.
Grupo B: mulheres que fazem dieta, mas sem grandes conflitos internos ou sofrimento.
Grupo C: mulheres que fazem dieta, mas vivenciam seu peso e sua alimentação com angústia e preocupação constante.
Grupo D: mulheres com diagnóstico de anorexia nervosa, que evitam calorias e gorduras de maneira extrema e apresentam uma relação altamente rígida com a alimentação.
Todas as participantes passaram por uma tarefa de escolha alimentar dentro de um exame de neuroimagem funcional. Durante o experimento, elas deveriam escolher entre diferentes alimentos, sabendo que ao final iriam realmente consumir um deles. Os pesquisadores analisaram qual região do cérebro era ativada no momento da decisão e compararam os resultados entre os grupos. Os achados são muito interessantes.
A figura mostra a atividade da região do córtex estriado (caudado anterior direito), uma parte do cérebro ligada à formação de hábitos e ao controle da ação. Essa área tem um papel importante na rigidez dos comportamentos: quanto mais ela está envolvida, mais um comportamento tende a se repetir, independentemente da intenção consciente da pessoa.
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Figura. Ativação do córtex estriado (caudado anterior direito) durante escolhas alimentares em diferentes grupos. As barras representam a média da ativação cerebral (z-score) em cada grupo, com linhas verticais indicando o erro padrão da média. O Grupo A corresponde a pessoas sem restrição alimentar, o Grupo B a pessoas que fazem dieta sem sofrimento significativo, o Grupo C a pessoas que fazem dieta e vivenciam seu peso e alimentação com sofrimento acentuado, e o Grupo D a pessoas com diagnóstico de anorexia nervosa. O símbolo * indica uma diferença estatisticamente significativa (p < 0.05) entre os grupos, enquanto o símbolo ~ representa uma tendência para significância estatística (p ≈ 0.1). Traduzido e adaptado de traduzida e adaptada de Foerde et al., 2020.
Os pesquisadores observaram que:
- Grupo A e Grupo B apresentaram pouca ativação nessa região. Isso sugere que suas escolhas alimentares eram mais flexíveis, influenciadas pelo contexto e pelo próprio desejo momentâneo.
- Grupo C mostrou um aumento na ativação do córtex estriado, indicando que essas participantes já demonstravam um padrão cerebral mais rígido na tomada de decisão alimentar. Embora ainda não tão extremo quanto o do Grupo D, a maneira como vivenciavam seu peso e sua alimentação parecia estar se consolidando em um mecanismo difícil de modificar.
- Grupo D apresentou a ativação mais intensa dessa região, sugerindo que suas escolhas alimentares estavam profundamente automatizadas. Isso significa que, em vez de tomarem decisões conscientes sobre comida, suas restrições pareciam seguir um padrão fixo, ativado pelo cérebro como um hábito que se reforça constantemente.
Além disso, os pesquisadores descobriram que quanto maior a ativação dessa região do cérebro, menor era a ingestão calórica real na refeição do dia seguinte. Isso significa que as participantes do Grupo D e, em menor grau, do Grupo C, realmente comiam menos, não apenas faziam escolhas diferentes no experimento.
Esses achados sugerem que a restrição alimentar pode evoluir para um comportamento automatizado, tornando-se menos influenciada por sinais internos de fome e mais impulsionada por padrões cerebrais rígidos. Para aquelas que fazem dieta, mas vivenciam essa relação com sofrimento (Grupo C), isso pode indicar um risco de intensificação da restrição ao longo do tempo, caso a rigidez alimentar se torne cada vez mais reforçada pelo cérebro
10 perguntas para quem busca o emagrecimento
Quando alguém busca o emagrecimento, um nutricionista pode inicialmente considerar propor alguma forma de restrição alimentar. No entanto, como os estudos demonstram, a relação entre restrição e comportamento alimentar é complexa, podendo levar a rigidez excessiva, maior vulnerabilidade emocional à comida e até padrões cerebrais automatizados de evitação alimentar.
Assim, antes de sugerir qualquer estratégia, é essencial investigar como a pessoa se relaciona com a comida e quais padrões de pensamento podem emergir ao longo do processo [4]. As perguntas abaixo foram escolhidas para identificar se a restrição alimentar pode estar se tornando inflexível e se há sinais de que o desejo de emagrecimento pode evoluir para um comportamento disfuncional. Elas ajudam a perceber não apenas a motivação para a mudança, mas também a forma como a pessoa lida com as emoções e as expectativas sobre o próprio corpo.
O que mudou na sua alimentação e no seu jeito de comer desde que decidiu emagrecer?
Permite entender se há um aumento progressivo na rigidez alimentar, algo comum em quem desenvolve restrições excessivas.
Quando você pensa na última vez que comeu um alimento que não planejava, o que aconteceu depois?
Avalia se há sentimentos de culpa, necessidade de compensação sobre “erros alimentares”.
Em quais momentos do dia você sente fome e como costuma lidar com essa sensação?
Identifica se há supressão da fome ou tentativas de ignorá-la, sinais que indicam uma desconexão com os sinais corporais.
Se alguém sugerisse que você relaxasse um pouco mais com sua alimentação, como acha que reagiria?
Pessoas com restrição rígida frequentemente reagem com ansiedade à ideia de flexibilizar sua alimentação.
Quando você imagina o futuro, como espera se sentir em relação à comida e ao seu corpo?
Permite identificar expectativas irreais, como um desejo de controle absoluto sobre a alimentação ou o corpo.
Como você percebe sua alimentação quando está sozinho e quando está com outras pessoas?
O isolamento alimentar ou o desconforto ao comer em público são sinais precoces de uma relação problemática com a comida.
O que acontece quando você se pesa e o número na balança não corresponde às suas expectativas?
Respostas que envolvem angústia intensa ou mudanças imediatas e drásticas na alimentação sugerem rigidez no controle do peso.
Quando sente que está comendo menos do que antes, como isso afeta seu humor e sua energia?
A restrição alimentar pode causar fadiga, irritabilidade e oscilações emocionais, e quem normaliza isso pode estar negligenciando sinais importantes.
Se precisasse passar um dia sem controlar sua alimentação ou seguir suas regras, como acredita que se sentiria?
Respostas que indicam medo ou ansiedade sugerem uma relação de dependência com o controle alimentar.
O que faz você sentir que está no caminho certo na sua alimentação e como sabe quando algo “sai do controle”?
Ajuda a perceber a presença de regras alimentares rígidas e a possível transformação da alimentação em um sistema binário de “acerto” e “erro”.
Essas perguntas não buscam apenas entender o que a pessoa come, mas como e por que ela come dessa forma. Ao identificar sinais de rigidez alimentar, medo do descontrole e padrões de pensamento inflexíveis, o nutricionista pode ajustar sua abordagem para evitar que a busca pelo emagrecimento se transforme em um ciclo de restrição extrema e sofrimento emocional. Afinal, a verdadeira mudança alimentar sustentável não se baseia na eliminação de certos alimentos, mas no desenvolvimento de uma relação saudável e flexível com a comida.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
Referências Bibliográficas
- Bandelin-Franke, L., Schenk, L., & Baer, N. (2023). To Eat or Not to Eat—A Qualitative Exploration and Typology of Restrictive Dietary Practices among Middle-Aged and Older Adults. Nutrients, 15. https://doi.org/10.3390/nu15112466.
- Lv, Y., Chen, Y., & Xiong, W. (2024). Effect of emotional priming on eating willingness of women with restrictive diet. Frontiers in Psychology, 15. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2024.1371484.
- Foerde, K., Schebendach, J., Davis, L., Daw, N., Walsh, B., Shohamy, D., & Steinglass, J. (2020). Restrictive eating across a spectrum from healthy to unhealthy: behavioral and neural mechanisms. Psychological Medicine, 52, 1755 – 1764. https://doi.org/10.1017/S0033291720003542.
- Daun, F., & Alvarenga, M. (2024). Habilidades de aconselhamento e comunicação para o nutricionista. In M. Alvarenga et al. (Eds.), Nutrição comportamental (3ª ed., pp. 127-153). Barueri, SP: Manole.
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