O verão desempenha um papel fundamental na vida dos brasileiros, sendo muito mais do que apenas uma estação do ano. No contexto cultural do Brasil, o verão está intrinsecamente ligado à alegria, à celebração e à descontração.
As praias movimentadas, as festas animadas e as atividades ao ar livre criam um ambiente propício para socialização, lazer e relaxamento.
Entretanto, a busca por um corpo considerado ideal para o verão tornou-se uma preocupação para muitos, refletindo tanto padrões estéticos quanto a influência da indústria da moda, da mídia e até mesmo de alguns profissionais da área da saúde – incluindo nutricionistas.
Com a proximidade desta estação do ano, as buscas por resultados rápidos disparam e os nutricionistas veem a demanda dos atendimentos subirem em grande velocidade, mas como é possível acolher tamanha demanda com uma conduta ética e profissional?
Antes de mais nada, um lembrete importante:
nutricionistas são profissionais da área da saúde (e não da estética) que tiveram a sua origem no ambiente hospitalar, onde suas funções estavam relacionadas ao fornecimento adequado de refeições para a recuperação de enfermos.
Obviamente, a história recente da profissão impregnou na sociedade, com muito mais intensidade, a ideia do nutricionista como um profissional “emagrecedor”. Mas ainda que tal percepção possa ser abraçada e acolhida em alguns atendimentos (até mesmo como um início de processo para desmistificar algumas questões de saúde com os pacientes), vestir a camisa e acreditar ser um profissional responsável por diminuir o peso das pessoas é uma falha grave na formação de muitos profissionais.
Especialmente porque algumas pesquisas com este público apontam que a busca pelo curso de nutrição está associada com prévias experiências negativas em relação ao próprio corpo e questões relacionadas à imagem corporal – mostrando, então, que conceitos e ideias equivocadas do senso comum podem ser carregadas deste antes do início da graduação até depois da conclusão.
Assim, tendo em mente conceitos amplos de saúde, fica evidente que não é papel do nutricionista trabalhar em “projetos verão”, principalmente porque estes costumam vir acompanhados de comportamentos (em especial, alimentares) que muito se distanciam de comportamentos saudáveis.
Todavia, deixar de acolher tal demanda não só afasta os possíveis clientes/pacientes (o que ninguém deseja) como também não deixa de ser uma oportunidade perdida de trabalhar questões de corpo e imagem corporal com pessoas que certamente precisam de uma atenção profissional.
O corpo ideal e o conceito de saúde
A idealização de corpo se refere à concepção ou imagem mental de um padrão físico considerado como o ideal, desejável ou aspiracional em uma determinada cultura ou sociedade.
É a criação de um modelo estereotipado de beleza que é valorizado e promovido como o padrão a ser alcançado (a qualquer custo). E ainda que idealização de corpo possa variar ao longo do tempo e entre diferentes culturas, no ocidente geralmente envolverá características como magreza, musculatura destacada e pele jovem.
A partir do momento que o referencial de saúde passa a se basear somente nestas características, tal idealização torna-se expressivamente problemática, pois pode levar a pressões psicológicas e sociais sobre os indivíduos para que alcancem esse padrão (e não busquem saúde), resultando em comportamentos negativos.
Byung-Chul Han, um filósofo sul-coreano, afirma em seu livro “Sociedade do Cansaço” que as pessoas estão inseridas, de forma geral, em um contexto de positividade e produtividade que as tornam reféns de suas próprias buscas – o que se traduz, para o corpo, na busca pela “melhor versão de si mesmo”.
Mas, abusando da reflexão, talvez fizesse mais sentido se esta busca estivesse voltada para a melhor versão do processo do viver, e não necessariamente para um indivíduo idealizado e final.
Em outras palavras, seria interessante entender o clássico conceito de saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) não como um indivíduo com “um completo bem-estar físico, mental, emocional”, mas uma vida de “bem-estar físico, mental, emocional” – conceitos equilibrados entre si.
Ampliando os conceitos na prática
É verdade que tais reflexões são fundamentais na construção do profissional de saúde que lidará, diariamente, com pessoas.
Mas, lá na ponta deste processo, na maioria das vezes, o cliente/paciente pouco se importará com tal discussão e estará essencialmente preocupado em emagrecer em um curto espaço de tempo… então como lidar com as principais situações?
É extremamente desaconselhável responder a esta demanda com um seco “emagrecer rápido não é saudável”, pois toda a expectativa do paciente para o momento do atendimento é quebrada em poucos segundos.
Nestes casos, o mais interessante é tentar investigar com o paciente a motivação por esta busca, sem deixar transparecer qualquer tipo de julgamento. Feito isto, busque resgatar tentativas prévias de emagrecimento (nunca é a primeira vez) tentando trazer para a conversa o porquê que foram tentativas frustradas – este, então, pode ser o momento de trazer discussões sobre como tentativas radicais e repetidas de emagrecimento rápido podem estar por trás da falta de sucesso em emagrecer.
Entretanto, mesmo na mais rica das conversas com o paciente, ainda pode permanecer a insistência nos resultados imediatos (afinal, o verão está chegando, ou mesmo algum outro evento).
Nestes casos, sem prometer absolutamente nada, pode ser interessante “entrar no jogo” do paciente mostrando o seu comprometimento em ajudá-lo a alcançar seus objetivos, sem comprometer a saúde dele, e visando resultados que sejam duradouros.
Essa brecha da conversa permite que o atendimento nutricional avance, sem que falsas promessas sejam feitas.
No fim, ser nutricionista hoje significa, todos os dias, precisar escolher entre abraçar o charlatanismo ou a promoção da saúde. Quem busca uma solução mágica, sempre estará suscetível aos charlatões, tornando o trabalho dos nutricionistas sérios mais difícil, mas certamente mais nobre.
O verão é um importante catalisador pela busca de emagrecimento e/ou comportamentos saudáveis, e pode ser aproveitado pelos nutricionistas como uma oportunidade de atender mais pessoas, auxiliando-as na busca por uma vida mais saudável (não necessariamente mais magra).
Referências Bibliográficas
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- Han, BC. Sociedade do cansaço. 2. ed.. Petrópolis: Vozes, 2017.
- Mendes JP, Vargas PR. O peso social do corpo idealizado. Cadernos de Psicologia. 2022; 4:605-30.
- Scarborough P, Rayner M, Stockley L, Black A. Nutrition professionals’ perception of the ‘healthiness’ of individual foods. Public Health Nutr. 2007;10(4):346-353.
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