Dia do nutricionista: O que nos tornamos?  

Até onde o conhecimento especializado vai levar a nutrição?   Resgate do passado para melhorar o futuro da nutrição  Se você […]


Até onde o conhecimento especializado vai levar a nutrição?  

Resgate do passado para melhorar o futuro da nutrição 

Se você parar qualquer pessoa na rua e perguntar “o que faz um nutricionista?”, é certo que a resposta será “passa dieta”, ou qualquer variação que remonte este sentido popular e simplista do que é a nutrição hoje. Não é possível dizer que esta resposta é certa ou errada, sob a perspectiva leiga, é esta a mensagem que foi difundida por anos e anos na cabeça das pessoas – inclusive a maioria daquelas que optaram por estudar Nutrição no ensino superior. Mas será que um curso de apenas 4 ou 5 anos é capaz de mudar uma percepção tão enraizada em nossa sociedade? E por que é tão urgente a necessidade de mudar esta percepção? 

Não, este não é um texto que visa expor todas as áreas de atuação do nutricionista, tampouco todas as especialidades. Áreas de atuação e especialidades dizem respeito a mão de obra, trabalho, execução de uma atividade – e, aqui, a proposta é ir além: qual o sentido de vida de uma pessoa que busca se aprofundar na ciência da Nutrição? Qual o propósito que esta pessoa enxerga para si neste mundo? 

Perguntas demasiadamente complexas, mas fundamentais. Fundamentais porque norteiam o senso comum sobre a profissão e, inevitavelmente, norteiam também a atividade dos nutricionistas: seja um nutricionista da alimentação coletiva, ou hospitalar, ou da pesquisa, ou do atendimento em consultório – o que motiva cada um deles a acordar todos os dias e prestar um serviço à comunidade? 

Se você está pensando em dinheiro, você não entendeu a pergunta. Parafraseando o autor Simon Sinek, um carro não anda para conseguir gasolina, um carro anda para chegar em algum lugar, e a gasolina faz parte do processo. Percebe a sutileza da pergunta que faz emergir um desespero frente a aparente falta de clareza sobre o propósito de muitos de nossos pares? 

Voltando às origens 

Para começar a responder estas perguntas é fundamental um conhecimento básico sobre a história da Nutrição (recomendo a leitura deste texto: https://academiadanutricao.com/todos/a-historia-da-nutricao-no-brasil/). Este conhecimento dá uma noção que, em suas origens, a profissão “nutricionista”, no Brasil e no mundo, se dá em contextos muito particulares: hospitais e serviços de alimentação e nutrição, ambos ambientes controlados onde há um fornecimento de refeições que visa a manutenção da saúde e, no caso do último, a garantia de uma força de trabalho. Tais refeições devem ser balanceadas, calculadas e suprir todas as necessidades daquele indivíduo que, nem nenhuma demanda específica para si, apenas as recebem.  

Ainda que com ressalvas, os ambientes controlados eram um dos pilares da Nutrição em sua origem, pois com eles não era necessário se preocupar muito com sistemas alimentares, acesso a alimentação, cultura e tantos outros aspectos biopsicossociais. 

Não há hospitais e serviços de alimentação e nutrição suficientes no mundo para abraçar todos os nutricionistas que se formam todos os anos – e, então, desloucou-se o propósito de garantir a manutenção da saúde por meio da alimentação para outros ambientes, ambientes não controlados, e é neste momento que a Nutrição tropeça. Tropeça como ciência e tropeça como uma ciência da saúde a serviço da população.  

O propósito do nutricionista 

O tropeço se deu quando se imaginou que seria possível garantir a manutenção da saúde por meio da alimentação saudável em ambientes não controlados, atuando da mesma forma que se atuava em ambientes controlados. E com essa premissa, quase como em um inconsciente coletivo, trocou-se o propósito do nutricionista em garantir a manutenção da saúde por meio de uma alimentação saudável, pelo propósito de garantir uma alimentação saudável e ponto final.  

Da boca para dentro, a Nutrição se especializou – e se especializou de um modo extremamente rico e amplo. Ainda que haja muito a se explorar, já é muito profundo o conhecimento do nutricionista sobre o impacto de nutrientes em todas as partes do corpo humano, desde o gene que nos forma até a pele que reveste o corpo. Toda essa especialização virou a vitrine da Nutrição e possibilitou o seu crescimento – mas o foco na alimentação saudável foi tão pronunciado, que em alguns casos até renunciou a manutenção da saúde. 

O pesquisador Gyorgy Scrinis cunhou o termo “nutricionismo” para descrever a tendência de reduzir a nutrição a um conjunto de nutrientes específicos, em vez de considerar o alimento como um todo. Ele argumenta que essa abordagem fragmentada pode levar a uma compreensão equivocada do que é uma alimentação saudável, pois as pessoas passam a se preocupar mais com a quantidade de proteína, gordura ou carboidrato ou qualquer nutriente que seja em suas refeições do que com a qualidade dos alimentos e da forma que estão consumindo. 

O nutricionismo permeia o senso comum do que é nutrição, e é por isso que é tão urgente mudar esta percepção. O propósito de vida de todos que se dizem nutricionistas deve voltar às raízes da manutenção da saúde (em seu sentido mais amplo). E se nestes quase 100 anos de profissão nos dedicamos com tanta vontade a tudo o que acontece da boca para dentro, já passou da hora de nos dedicarmos, como classe profissional, a tudo o que acontece da boca para fora.  

Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutorando pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição. 

Referências bibliográficas 

  • Alvarenga, M et al. (Org.). Nutrição comportamental. 2. ed. Barueri: Manole, 2019. 
  • Cannon, G. (2005). The rise and fall of dietetics and of nutrition science, 4000 BCE–2000 CE. Public Health Nutrition, 8, 701 – 705. https://doi.org/10.1079/PHN2005766
  • Marcason, W. (2015). Dietitian, dietician, or nutritionist?. Journal of the Academy of Nutrition and Dietetics, 115 3, 484 . https://doi.org/10.1016/j.jand.2014.12.024
  • Scrinis, G. (2021). Nutricionismo. São Paulo: Editora Elefante. 
  • Vasconcelos, F. A. G. (2002). O nutricionista no Brasil: uma análise histórica. Revista De Nutrição, 15(2), 127–138. https://doi.org/10.1590/S1415-52732002000200001 
  • Villela, M. C. E.; Timerman, F. (2023). Força, foco e fé: a sociedade do desempenho e a (má) alimentação. Saúde e Sociedade. v. 32, n. 2 https://doi.org/10.1590/S0104-12902023210771pt 

Deixe um comentário

Já pensou em anunciar na comunidade nutricional mais relevante do Brasil?
This is default text for notification bar