muito provavelmente você já ouviu falar sobre uma relação entre o cérebro e o intestino e, assim como toda “novidade” encontrada por estudos científicos, o termo “eixo intestino-cérebro” vendo sendo bastante utilizado pela mídia, especializada ou não, de forma rasa e misteriosa como se esta fosse a grande resposta para a maioria dos problemas das pessoas – da constipação à depressão. Entretanto, qual será o real impacto desta associação no cotidiano de uma pessoa comum? Ainda que tal descoberta não seja exatamente uma novidade, pouco se aprofunda sobre ela na maioria dos cursos de graduação em nutrição e, sendo bastante realista, são poucos os nutricionistas que lembram na ponta da língua os detalhes das aulas de fisiologia que tiveram nos primeiros anos da faculdade. Assim, resgatar alguns conceitos mostra-se fundamental para o completo entendimento da relação entre os órgãos. O sistema nervoso entérico (SNE), que compõe o sistema nervoso periférico, é aquele que reveste todo o trato gastrointestinal (TGI). O SNE é responsável por regular todas as funções motoras e de secreção do TGI, bem como as funções das células endócrinas localizadas nesta região – de forma independente do sistema nervoso central (SNC), mas, obviamente, dispondo de um sistema de troca de informações constante com ele. Esta comunicação se dá de forma bilateral, de modo que alterações no SNC (incluindo distúrbios conhecidos, como depressão e ansiedade) podem ter influência no SNE e distúrbios no TGI (como diarreias constantes ou constipação) também poderão influenciar no SNC (Furness, 2012; Sharkey & Mawe, 2023). Permeando, ainda, a relação entre o SNE e o SNC, está a microbiota intestinal – que em condições ideais possibilita o funcionamento equilibrado e saudável de ambos os sistemas. Em uma importante revisão publicada na revista Nature, o gastroenterologista Emeran Mayer destaca que a influência dos micro-organismos do intestino se estende à formação da memória, a nossa base emocional e o nosso controle sobre os comportamentos. E isto somente é possível graças as vias de sinalização imunológicas e endócrinas dos produtos de metabolização da microbiota intestinal, sendo estes diretamente influenciados pelo comportamento alimentar (Mayer, 2011; Liu et al., 2019). Depressão se cura pelo intestino? Um recente estudo belga, realizado com mais de 1000 indivíduos, identificou diferenças importantes na composição da microbiota das pessoas com sintomas depressivos autorreferidos quando comparadas àquelas sem os sintomas. Os pesquisadores sugerem que os produtos de metabolização de certas cepas bacterianas auxiliam na proteção da permeabilidade da mucosa intestinal, desfavorecendo um estado pró-inflamatório percussor do estresse e sintomas depressivos. (Valles-Colomer et al., 2020). Entretanto, apesar deste mecanismo bem descrito, revisões sistemáticas de tentativas de modulação da microbiota intestinal – por meio de tratamento com probióticos – com o objetivo de reduzir os sintomas depressivos reforçam que, na prática, ainda não há evidências o suficiente que sustentem esta alternativa de tratamento – ainda que sejam inegáveis os outros benefícios do consumo de probióticos (Ng et al., 2018; Liu et al., 2018). Mas e os distúrbios intestinais? Eles podem ser abrandados com antidepressivos? A síndrome do intestino irritável (SII) é um dos distúrbios do TGI mais comuns entre a população geral e sua principal característica é uma importante, e frequente, dor abdominal. Reconhece-se que a condição é uma desregulação do eixo intestino-cérebro, justamente por conta da percepção de dor visceral – pois em situações normais a comunicação entre o SNE e SNC não incluem a consciência sensível da região (Karamanolis & Kyrlagkitsi, 2002; Weber et al., 2022). Com exceção da SII que se desenvolve após algum grave episódio de infecção, em geral sua origem em um indivíduo é difícil de determinar, uma vez que são muitos fatores envolvidos: hábitos alimentares, uso de medicamentos e condições psicossociais (Rodiño-Janeiro et al., 2018). Uma das alternativas de tratamento para esta dor visceral salienta a existência (e importância) do eixo intestino-cérebro, uma vez que é baseada no uso de medicamentos das classes de antidepressivos. A descoberta aconteceu por acaso em um ensaio clínico que buscava avaliar a eficiência destes medicamentos em pessoas com depressão e SII simultaneamente, e naquelas que apresentavam apenas SII também emergiram os benefícios do uso desta classe de medicamentos (Halper et al., 2005). Como eu posso lidar com essas questões no atendimento? Não existem dúvidas que é uma facilidade imensa poder pesquisar o que quisermos no Google, mas quando isto envolve doenças e sintomas, tudo fica mais complicado e, infelizmente, muitas dúvidas (e até autodiagnósticos) podem chegar no momento de atendimento (e até nas redes sociais dos nutricionistas mais ativos). Nunca é demais reforçar que diagnósticos de depressão (e outros distúrbios mentais) e SII (e outros distúrbios intestinais) devem ser feitos por médicos especializados – psiquiatras e gastroenterologistas. Dito isso, é importante destacar que tais condições não são obrigatoriamente simultâneas e ambos os casos possuem nuances que não necessariamente irão definir um diagnóstico. Assim, cabe ao nutricionista encaminhar o paciente para um especialista quando houver suspeita de alguma destas condições (ou recomendar, no caso de dúvidas nas redes sociais) e, com pacientes já diagnosticados, seguir os protocolos indicados para tais distúrbios – respeitando sempre a realidade e as condições dos pacientes. Ainda que em alguns casos realmente haja um acúmulo de condições para equilibrar na abordagem nutricional (a tal da encrenca em dobro), a descrição dos mecanismos do eixo-intestino cérebro ajuda qualquer profissional a ter um olhar mais claro para o que está acontecendo com o paciente, para decidir – junto com ele – qual será o melhor caminho para o cuidado. Referências BibliográficasFurness, J. The enteric nervous system and neurogastroenterology. Nat Rev Gastroenterol Hepatol 9, 286–294 (2012) Halpert, A. et al. Clinical response to tricyclic antidepressants in functional bowel disorders is not related to dosage. Am. J. Gastroenterol. v. 100, p. 664-671, 2005. Karamanolis, D; Kyrlagkitsis, I. Pathophysiology of Irritable bowel syndrome: The role of brain-gut axis and serotoninergic receptors. Annals of gastroenterology, v. 15, n. 3, p. 248-252, 2002. Liu B, He Y, Wang M, Liu J, Ju Y, Zhang Y, Liu T, Li L, Li Q. Efficacy of probiotics on anxiety-A meta-analysis of randomized controlled trials. Depress Anxiety. 2018 Oct;35(10):935-945. Liu, P, Peng, G, Zhang, N, Wang, B, Luo, B. (2019). Crosstalk Between the Gut Microbiota and the Brain: An Update on Neuroimaging Findings. Front Neurol,10, 883 Mayer, E. Gut feelings: the emerging biology of gut–brain communication. Nat Rev Neurosci 12, 453–466 (2011). Ng QX, Peters C, Ho CYX, Lim DY, Yeo WS. A meta-analysis of the use of probiotics to alleviate depressive symptoms. J Affect Disord. 2018 Mar 1;228:13-19. doi: 10.1016/j.jad.2017.11.063. Epub 2017 Nov 16. PMID: 29197739. Rodiño-Janeiro BK, et al. A Review of Microbiota and Irritable Bowel Syndrome: Future in Therapies. Adv Ther, 2018; 35(3):289-310. Sharkey, K. A., & Mawe, G. M. (2023). The enteric nervous system. Physiological Reviews, 103(2), 1487– 1564. Valles-Colomer, M., Falony, G., Darzi, Y. et al. The neuroactive potential of the human gut microbiota in quality of life and depression. Nat Microbiol 4, 623–632 (2019). Weber J. B., Weber C. de S. B., & Ferraz A. R. (2022). Síndrome do Intestino Irritável: uma revisão de literatura. Revista Eletrônica Acervo Médico, 18, e11009.
Eixo Intestino-Cérebro: Encrenca em dobro?
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