Sempre presentes na base alimentar de diferentes culturas, as leguminosas oferecem uma riqueza nutricional difícil de ignorar: proteínas de alta qualidade, fibras e compostos bioativos com potencial para modular processos metabólicos e inflamatórios no organismo. Ainda assim, seu consumo vem diminuindo. Compreender o real impacto das leguminosas na saúde humana não é apenas uma questão de interesse científico, mas uma necessidade diante das mudanças nos padrões alimentares modernos na realidade brasileira.
As leguminosas são uma fonte rica e acessível de proteínas, essenciais para a nutrição humana. Seu teor proteico varia conforme a espécie, com valores médios de 23,3% a 26% nas ervilhas, 25,6% a 28,9% nas lentilhas e 19,3% a 23,9% nos feijões, sempre considerando a base seca. Esse perfil proteico coloca as leguminosas entre as melhores opções vegetais para quem busca uma alimentação equilibrada e rica em aminoácidos essenciais. [1]
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As proteínas das leguminosas podem ser divididas em três grandes grupos, de acordo com sua função na planta: proteínas estruturais, de armazenamento e biologicamente ativas. As proteínas estruturais fazem parte da composição das células da planta, ajudando na sustentação dos tecidos e no crescimento da semente. As proteínas de armazenamento são as principais responsáveis por nutrir a planta durante a germinação, servindo como reserva de aminoácidos para o desenvolvimento inicial do broto. Já as proteínas biologicamente ativas, como enzimas, lectinas e inibidores enzimáticos, desempenham papéis específicos no metabolismo da planta, incluindo defesa contra predadores e regulação do crescimento. Algumas dessas proteínas ativas, como as lectinas, podem ter impactos positivos ou negativos na digestão humana, dependendo da forma de preparo dos alimentos. [1]
Dentro das proteínas de armazenamento, encontramos dois grandes grupos: globulinas e albuminas. As globulinas, que compõem a maior parte das proteínas das leguminosas, são menos solúveis em água e estão amplamente presentes em sementes como ervilhas e lentilhas. Já as albuminas, que são mais solúveis, são encontradas em maior quantidade no grão-de-bico e na soja. Essa diferença influencia a digestibilidade e a forma como essas proteínas interagem com outros nutrientes no organismo. [1]
No preparo caseiro, as proteínas das leguminosas sofrem transformações que afetam sua estrutura e digestibilidade. A estabilidade térmica dessas proteínas varia entre as espécies, mas, de maneira geral, o calor do cozimento desnatura parte dessas moléculas, tornando-as mais acessíveis à digestão. Isso significa que cozinhar corretamente as leguminosas melhora a biodisponibilidade de suas proteínas, tornando os aminoácidos mais fáceis de serem absorvidos pelo organismo. [1]
Além das mudanças estruturais que ocorrem durante o cozimento, há também um fenômeno interessante: a geração de peptídeos bioativos. Durante a digestão, as proteínas das leguminosas são quebradas em fragmentos menores que podem apresentar benefícios à saúde.
1. Poder antioxidante e provável fator de proteção contra doenças crônicas
Os peptídeos bioativos podem atuar neutralizando o estresse oxidativo, um fator determinante na fisiopatologia de diversas doenças crônicas, incluindo câncer e doenças cardiovasculares. Estudos in vitro indicam que hidrolisados proteicos de feijão, soja e grão-de-bico apresentam uma elevada capacidade antioxidante, possivelmente devido à presença de aminoácidos específicos em sua composição [4,5]. No entanto, a identificação precisa dos peptídeos mais eficazes ainda requer maior investigação, especialmente em estudos clínicos.
2. Possível benefício para o metabolismo lipídico
Em um estudo conduzido em Minas Gerais, camundongos alimentados com uma dieta hiperlipídica suplementada com hidrolisado proteico de feijão carioca apresentaram menor ganho de peso, redução na ingestão alimentar e melhora nos marcadores inflamatórios associados à obesidade. Além disso, foi identificado o flavonoide kaempferol como um dos possíveis responsáveis por esses efeitos. Os resultados sugerem que proteínas derivadas de leguminosas podem atuar na modulação do metabolismo lipídico e inflamatório – mas como em todo estudo em modelos animais, esses resultados não podem, sozinhos, serem replicados para a nossa realidade [6].
3. Possível benefício para o metabolismo glicêmico
Hidrolisados proteicos do tremoço andino, por exemplo, demonstraram aumento na captação de glicose em culturas celulares de enterócitos e adipócitos, além de reduzir a expressão de genes envolvidos na produção hepática de glicose [7]. Em um estudo in vivo com ratos diabéticos, proteínas hidrolisadas do feijão preto reduziram significativamente os níveis de glicose no sangue ao inibir transportadores intestinais responsáveis pela absorção de glicose [5]. Esses achados reforçam o potencial dos peptídeos derivados das leguminosas como prováveis aliados no manejo do controle glicêmico.
4. Redução do colesterol e proteção cardiovascular
Em um estudo com camundongos submetidos a uma dieta rica em gorduras, aqueles que receberam hidrolisado proteico de feijão apresentaram níveis reduzidos de colesterol LDL, menor inflamação sistêmica e menor acúmulo de lipídios no fígado [8]. Acredita-se que a presença de peptídeos bioativos nesses hidrolisados contribua para a inibição da oxidação lipídica, um dos mecanismos centrais no desenvolvimento da aterosclerose.
5. Propriedades anti-inflamatórias e modulação imunológica
A inflamação crônica de baixo grau está envolvida em diversas patologias, incluindo obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares. Peptídeos derivados da soja e do feijão demonstraram capacidade de modular marcadores inflamatórios, reduzindo a expressão de citocinas pró-inflamatórias como TNF-α e IL-6 [5]. Além disso, peptídeos específicos, como VPY e lunasin, foram identificados como potenciais reguladores da inflamação por mecanismos ainda não completamente elucidados [9].
Olhando para todos esses resultados, um olhar leigo enxergaria nas leguminosas uma panaceia para todos os problemas de saúde – e não podemos seguir por este caminho. Embora haja de fato uma série de benefícios, eles estão diretamente ligados ao consumo regular, dentro de uma alimentação adequada – algo que vem se tornando um desafio no Brasil.
O consumo de feijão, nossa principal leguminosa, está em queda. Entre 2007 e 2017, a frequência de consumo regular (cinco ou mais vezes por semana) caiu de 67,5% para 59,5%, com tendência de declínio contínuo até 2025, quando menos da metade da população deverá manter esse hábito. Esse padrão de redução atinge todas as faixas etárias e níveis educacionais, com exceção daqueles com mais de 12 anos de escolaridade, evidenciando uma mudança nos hábitos alimentares tradicionais [10].
Ao mesmo tempo, não existe uma substituição do feijão por outras leguminosas de maneira significativa. Em Campinas (SP), um estudo revelou que apenas 24% daqueles que reduziram o consumo de feijão compensaram com outras leguminosas, e esse comportamento foi mais comum em grupos de maior renda e escolaridade. Isso reforça que, para grande parte da população, especialmente os grupos mais vulneráveis, a redução do consumo de feijão não significa uma migração para outras fontes vegetais de proteína, mas sim uma piora na qualidade da alimentação [11].
No campo, a produção de feijão também enfrenta desafios: o número de municípios especializados na cultura caiu 13,95% entre 2006 e 2017, acompanhando a redução da área plantada e a concentração da renda da produção em poucas localidades [12].
Assim, embora as leguminosas sejam aliadas importantes para a saúde, sua inclusão na alimentação diária depende de estratégias que valorizem e incentivem seu consumo, tanto em nível individual quanto em políticas públicas de segurança alimentar. Sem isso, os potenciais benefícios nutricionais desses alimentos podem se tornar cada vez mais distantes da realidade.
Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
Referências Bibliográficas:
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