A gordofobia é um fenômeno social que se manifesta de diversas maneiras na vida das pessoas, refletindo preconceitos profundos e enraizados que ultrapassam as barreiras do corpo e da saúde.
O termo refere-se à discriminação e ao preconceito contra pessoas gordas, muitas vezes expressos em atitudes, palavras e comportamentos que desumanizam indivíduos com base em seu peso corporal. Essa discriminação não é apenas um reflexo de preferências pessoais, mas sim de um sistema de crenças que associa o valor e a dignidade de uma pessoa ao tamanho de seu corpo.
Essas crenças não surgem do nada; elas são construídas historicamente e perpetuadas por várias instituições, incluindo pesquisadores, médicos, nutricionistas e outros profissionais de saúde. Não é de hoje que a sociedade ocidental valoriza corpos magros, associando-os à disciplina, controle e até mesmo virtude moral.
Por outro lado, corpos gordos foram, por muito tempo, vistos como símbolo de excessos e indulgência. Este estigma de peso, apesar de muitas vezes não declarado, é profundamente enraizado nas práticas de muitos profissionais de saúde e pesquisadores, que podem, inadvertidamente, perpetuar preconceitos ao longo de suas carreiras.
O Papel do IMC na Perpetuação do Estigma de Peso
Por exemplo, o Índice de Massa Corporal (IMC), uma medida amplamente utilizada para avaliar a saúde individual, tem suas origens no trabalho do matemático belga Adolphe Quetelet no século XIX. Quetelet não tinha a intenção de criar uma ferramenta diagnóstica; seu objetivo era encontrar o “homem médio”, ou uma medida estatística do corpo humano.
No entanto, na metade do século XX, o IMC foi adotado como uma métrica-chave para classificar a saúde das pessoas com base em sua altura e peso. Essa adoção generalizada do IMC em avaliações individuais é problemática por várias razões.
O IMC é um indicador falho quando usado para avaliar a saúde individual porque não considera variáveis importantes, como a composição corporal, a distribuição de gordura, a genética e fatores metabólicos. Um exemplo clássico da falha do IMC é o da pessoa musculosa que pode ser classificada com obesidade de acordo com o IMC, apesar de ter um baixo percentual de gordura corporal e estar em excelente condição física.
Da mesma forma, uma pessoa com um IMC “normal” pode ter uma alta porcentagem de gordura corporal e estar em risco para doenças associadas ao excesso de gordura visceral. Esse uso indiscriminado do IMC ignora a complexidade da saúde humana e reduz a compreensão da obesidade a uma simples equação matemática.
Obesidade Metabolicamente Saudável: Desafiando a Narrativa Comum
O conceito de obesidade precisa ser analisado sob uma perspectiva mais ampla. Na última década, a obesidade tem sido tratada como uma doença em si, algo que é refutado por pesquisadores e profissionais da área.
Classificar a obesidade como uma doença, em vez de um fator de risco, pode levar a tratamentos que abordam apenas o sintoma visível – o peso corporal elevado – sem tratar as causas subjacentes que contribuem para essa condição. Isso não só é ineficaz, como também pode reforçar o estigma com o peso no âmbito profissional, perpetuando a ideia de que o corpo gordo é inerentemente doente.
Nesse contexto, surge a ideia da obesidade metabolicamente saudável, uma pessoa que, apesar de ter um peso considerado elevado, não apresenta as comorbidades frequentemente associadas à obesidade, como hipertensão, diabetes tipo 2 ou dislipidemia. Esses indivíduos existem e desafiam a narrativa dominante de que o peso elevado é sempre sinônimo de má saúde.
Estudos mostram que é possível ser gordo e saudável, mas esse conceito é frequentemente ignorado ou minimizado – por alguns pesquisadores, médicos, nutricionistas e, claro, pela mídia de forma geral.
As Consequências da Gordofobia na Saúde Pública
A gordofobia e o estigma de peso têm implicações sérias para a saúde pública, especialmente quando se considera a prevalência da obesidade. Quando pessoas gordas são constantemente envergonhadas ou discriminadas, isso pode levar a uma série de consequências negativas, como depressão, ansiedade, baixa autoestima e até mesmo comportamentos alimentares desordenados.
Além disso, a marginalização dessas pessoas pode afastá-las do sistema de saúde, tornando-as menos propensas a procurar ajuda ou a seguir tratamentos médicos. Esse isolamento contribui para a gravidade da epidemia de obesidade danosa, criando um ciclo vicioso em que o preconceito alimenta a condição, que por sua vez alimenta o preconceito.
Para quebrar esse ciclo, é necessário um olhar mais abrangente sobre a obesidade e a saúde em geral. Isso implica reconhecer a complexidade dos fatores que contribuem para o ganho de peso e a saúde, incluindo fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais.
Também é vital adotar uma abordagem centrada na pessoa, que não reduza os indivíduos ao seu peso ou forma corporal, mas que considere sua saúde em uma perspectiva ampla e foque em comportamentos saudáveis.
A saúde não pode ser medida apenas pelo número na balança; ela envolve bem-estar mental, emocional e físico, e todas essas dimensões precisam ser consideradas na avaliação de uma pessoa.
Desconstruindo Preconceitos: Um Novo Olhar Sobre a Obesidade
O tratamento da obesidade, portanto, não pode se basear exclusivamente na perda de peso. Ele deve focar na promoção da saúde em todas as suas formas, respeitando a individualidade de cada pessoa. Isso inclui a implementação de políticas de saúde pública que combatam a discriminação e promovam a aceitação do corpo, ao mesmo tempo que incentivam estilos de vida saudáveis que não estejam centrados na perda de peso como único objetivo.
Também é crucial que os profissionais de saúde sejam treinados para reconhecer e combater seus próprios preconceitos, oferecendo cuidados que sejam verdadeiramente inclusivos e baseados em evidências.
Para avançar, precisamos de um paradigma que valorize a diversidade corporal, que compreenda a saúde como multifacetada e que trate as pessoas com dignidade e respeito, independentemente do tamanho de seus corpos.
Somente assim poderemos começar a desmantelar os preconceitos que perpetuam a discriminação e, até mesmo, a ausência de saúde.
Leituras recomendadas:
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Texto por Felipe Daun: nutricionista, mestre e doutorando pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Aprimorando em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM IPq-FMUSP. Professor do Instituto Nutrição Comportamental e colaborador da Academia da Nutrição.
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