A nutrição e suas diversas facetas podem modificar direta e indiretamente todos os fenômenos fisiológicos durante o curso da vida. Como evidência disso, foi visto que a epidemiologia de algumas doenças pode ser muito diferente dependendo da região e do tipo de dieta dominante em um determinado contexto, sobretudo das doenças crônicas intestinais.
Uma forte correlação entre sintomatologia, atividade da doença e hábitos alimentares tem sido observada em muitas doenças comuns, tanto orgânicas quanto funcionais. A revisão italiana de Corsello et al. Diet and Nutrients in Gastrointestinal Chronic Diseases. Nutrients 2020, 12, 2693; doi:10.3390/nu12092693, tem como objetivo definir o papel da dieta na patogênese e manejo das doenças crônicas gastrointestinais mais comuns.
Dieta, Microbiota e Inflamação
O intestino possui uma população de 1011 organismos e mais de 103 espécies diferentes de bactérias por grama de fezes. Os quatro principais “filos” reconhecidos e estudados ao nível da microbiota intestinal são Actinobacteria, Firmicutes, Proteobacteria e Bacteroidetes. Eles estão em uma relação simbiótica com o organismo, dando origem a múltiplas funções, tanto nutricionais, como digestão de alimentos e produção de nutrientes para o organismo, quanto imunológicas, regulando a imunidade da mucosa e protegendo contra a colonização de outros microrganismos hostis.
A composição da microbiota intestinal no indivíduo pode mudar de acordo com predisposição genética, exposição ambiental, dieta e estilo de vida. Ocasionando um desequilíbrio entre bactérias protetoras e patogênicas pode levar a um estado chamado “disbiose”, que pode causar uma desregulação imunológica do organismo e a patogênese de muitas doenças.
O papel que a dieta tem no desenvolvimento da microbiota começa desde os primeiros estágios da vida, principalmente com a introdução de alimentos sólidos, quando a microbiota intestinal do indivíduo se torna cada vez mais estável e semelhante à dos adultos.
Dietas contendo grandes quantidades de gorduras saturadas, laticínios e carboidratos simples refinados e uma menor quantidade de vegetais, cereais e fibras – a dieta “ocidentalizada” - demonstraram, ser a razão da alteração do microbioma intestinal e, portanto, do aumento do risco de desenvolvimento de doenças autoimunes, esclerose múltipla, doenças inflamatórias intestinais, obesidade e síndrome metabólica.
Síndrome do intestino irritável (SII)
A SII é uma doença gastrointestinal funcional, caracterizada como uma dor abdominal recorrente por pelo menos 4 dias por mês nos últimos dois meses, associada a um ou mais sintomas de alterações na frequência ou nas características das fezes. Sua fisiopatologia ainda não está totalmente esclarecida, mas parece que alterações da microbiota, hipersensibilidade e intolerância a alguns alimentos, aumento da permeabilidade intestinal, inflamação de baixo grau na mucosa e uso prolongado de antibióticos podem ser alguns dos elementos mais importantes no desenvolvimento dos sintomas.
Mais de 2/3 dos pacientes com SII estão convencidos de que seus sintomas estão associados à ingestão de certos alimentos, como leite e seus derivados, levando alguns a evitar esses alimentos, com um risco estimado de 12% de déficits nutricionais a longo prazo.
Assim, uma dieta de exclusão não é indicada como abordagem de primeira linha para o manejo da SII e assim uma orientação de 3 refeições por dia em horários regulares, boa hidratação (1,5 a 2 L por dia) e limitação de potenciais desencadeadores de doenças, como álcool, cafeína, alimentos condimentados e gordurosos. A segunda linha de manejo é a redução de ingestão de alimentos contendo FODMAPs - Oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis fermentáveis, que são menos prontamente absorvidos. Os FODMAPs, são encontrados principalmente em algumas frutas, legumes, laticínios e adoçantes artificiais, podem exacerbar os sintomas devido à sua fermentação e efeitos osmóticos no lúmen, levando a distensão.
Uma dieta baseada em alimentos com “baixo teor de FODMAP” parece induzir uma melhora significativa nos sintomas como dor abdominal, flatulência e diarreia e permite que o paciente consuma alimentos de cada um dos grupos alimentares centrais, minimizando o efeito na adequação nutricional quando implementada adequadamente.
Constipação crônica
A constipação crônica foi definida como a redução no número de evacuações para menos de 3 por semana por um período prolongado, as causas comuns incluem a falta de fibras, associada ao consumo inadequado de vegetais e frutas e ingestão insuficiente de líquidos.
Três tipos diferentes de constipação crônica primária foram descritos, que mostram uma sobreposição substancial entre si e outras doenças, como a SII. Esses três tipos são distúrbios de evacuação retal, constipação de trânsito lento e constipação de trânsito normal; este último parece representar o maior grupo.
Mesmo que o manejo da constipação crônica nem sempre seja simples, devido à possível fisiopatologia diferente, estudos indicam que uma dieta rica em fibras solúveis e ingestão de líquidos pode aumentar o peso das fezes, resultando em redução do tempo de trânsito do cólon.
Dispepsia Funcional
É um distúrbio gastrointestinal funcional debilitante caracterizado por saciedade precoce, plenitude pós-prandial ou dor epigástrica relacionada às refeições. Inclui diferentes entidades clínicas e os pacientes geralmente são classificados em um dos dois subtipos: síndrome do desconforto pós-prandial (PDS), cujos sintomas estão estritamente relacionados à ingestão de alimentos, e síndrome da dor epigástrica (EPS). Essas condições são caracterizadas por vários sintomas gastrointestinais na parte superior do abdome e pela ausência de uma patologia orgânica subjacente.
Muitos alimentos são relatados pelos pacientes como associados ao início dos sintomas (por exemplo, dietas ricas em carboidratos fermentáveis, bebidas açucaradas, frutas, leite, trigo), particularmente aqueles relacionados hipersensibilidade à produção de gás e pressão osmótica no trato digestivo superior.
Mesmo que não haja uma abordagem padronizada para o manejo dietético da dispepsia funcional, as sugestões dietéticas atuais se concentram em comer refeições mais frequentes e menores, com base na evidência de que um alto volume de refeição e distensão gástrica podem estar implicados no desencadeamento de sintomas e em “baixa dietas com baixo teor de gordura.
Doenças Inflamatórias Intestinais (DII)
A DII é um grupo de doenças crônicas de etiologia multifatorial, caracterizada por um processo patológico inflamatório local e sistêmico e uma história natural que apresenta fases de exacerbação e remissão, com recorrência e progressão dos sintomas de lesão intestinal. O espectro de DII inclui dois fenótipos clínicos principais: doença de Crohn (DC) e colite ulcerosa (UC).
Muitos estudos indicam um possível papel da dieta no desenvolvimento da DII. Também foi observado que a microbiota de pacientes com DII é muito diferente daquela de indivíduos saudáveis, e que isso pode afetar a digestão e o metabolismo de muitos alimentos.
Um padrão alimentar que pode ser útil na prevenção e após o diagnóstico é a dieta mediterrânea, caracterizada por alto consumo de azeite e peixes, que são ricos em ácidos graxos mono e poliinsaturados, frutas, grãos integrais e vegetais, a fim de permitir a ingestão adequada de fibras.
Quando a doença está em atividade pode-se adotar a nutrição enteral, com intenção de reduzir a fatores de risco da alimentação via oral e expor o indivíduo à atividade anti-inflamatória de alguns nutrientes contidos na fórmula. Essa é uma prática comum em pediatria, entretanto cada caso deve ser avaliado individualmente.
Esofagite Eosinofílica
A EEo é uma doença inflamatória crônica imunomediada do esôfago associada a um depósito de eosinófilos na parede esofágica. As causas ainda são desconhecidas. Disfagia, refluxo gastroesofágico e azia estão entre os sintomas mais frequentes. Se não tratada, a inflamação do esôfago pode levar à estenose do lúmen (obstrução do esôfago).
Em crianças, a modificação da dieta pode ser um caminho de sucesso. Dietas elementares, baseadas na administração de aminoácidos simples ou dietas de eliminação (proteínas do leite de vaca, soja, trigo, ovos, amendoim e crustáceos), têm respostas de melhora a inflamação esofágica. Porém ainda são técnicas de difícil manejo no dia a dia.
A Nutrição em favor da qualidade de vida
Mesmo que os estudos nem sempre sejam claros e inequívocos, é importante não subestimar o papel que a nutrição e a dieta podem ter, não apenas no desenvolvimento de doenças gastrointestinais crônicas, mas também na manutenção da remissão dos sintomas e, principalmente, na melhora a qualidade de vida dos pacientes.
Entre todas as doenças e as diferentes abordagens que foram avaliadas nos últimos anos, parece ser evidente uma possível ligação entre a “dieta ocidentalizada” e o agravamento dos sintomas, sendo necessária a necessidade de ingestão controlada de gorduras animais e açúcares refinados.
Nutricionista, você tem pacientes com alguma dessas doenças crônicas intestinais? Qual conduta você costuma usar nestes casos?
Referências:
Corsello A, Pugliese D, Gasbarrini A, Armuzzi A. Diet and Nutrients in Gastrointestinal Chronic Diseases. Nutrients. 2020 Sep 3;12(9):2693. doi: 10.3390/nu12092693. PMID: 32899273; PMCID: PMC7551310.